Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Dinheiro brasileiro, fraude importada

A Folha de S.Paulo publicou matéria (‘Verba da Ancine é usada para decoração’, sexta, 29/10) sobre a concessão, pela Ancine, de 300 mil reais do dinheiro público para que o canal internacional People & Arts realizasse no Brasil um episódio de um reality show sobre decoração (aqui, com o título ‘Enquanto você não vem’). O reality show está há muito tempo na grade do canal. O tal episódio foi dirigido por um argentino e editado na Argentina.

O assunto é grave e na verdade espelha uma grande distorção que ocorre há mais de dois anos. Os recursos a que a matéria se refere provêm do artigo 39 da Medida Provisória 2228-1. Em linhas gerais, esse artigo dá às programadoras internacionais de TV por assinatura a prerrogativa de ficarem isentas da taxação de 11% sobre suas receitas (Condecine, Contribuição Para o desenvolvimento da Indústria Cinematográfica) em troca da aplicação de 3% desse total na co-produção de obras nacionais.

É o único instrumento que existe para o incentivo sistemático à produção de obras brasileiras para televisão (não contando, portanto, os eventuais editais de produção do Ministério da Cultura). É também uma forma ágil e desburocratizada de incluir, ainda que embrionariamente, a produção brasileira em algumas das mais de 200 redes internacionais que são distribuídas no Brasil para assinantes brasileiros.

Fraude pouco original

O que vem ocorrendo, no entanto, é que as programadoras internacionais estão em grande medida muito mais interessadas em burlar a lei do que em avaliar de que maneira podem se beneficiar dela com a diversificação de sua programação – usando, para isso, um incentivo legítimo dado pelo Estado brasileiro.

Essa burla é feita de várias maneiras. A mais comum é usar produtoras brasileiras como testas-de-ferro para produzirem (usando o dinheiro que seria destinado à realização de obras originais brasileiras) o que já faz parte do seu orçamento de produção, com dinheiro bom de suas receitas.

Foi precisamente o que ocorreu no caso denunciado pela Folha. Há bem pouco que possa ser feito pela Ancine e quase nenhuma responsabilidade dela em episódios dessa natureza. A agência apenas examina, tecnicamente, as propostas enviadas pelas produtoras, a partir de contatos já feitos entre essas produtoras e as programadoras. Não interfere no conteúdo e nem poderia fazê-lo, porque isto seria uma ingerência indevida. Sabe da fraude e em alguns casos consegue contê-la. Isso aconteceu no ano passado, por exemplo, quando uma produtora brasileira chegou ao extremo de apresentar um projeto de criação de vinhetas promocionais para uma rede estrangeira. Mas na maior parte das vezes a Ancine não tem como evitar a fraude anunciada.

O resultado é a má aplicação do melhor dispositivo que se fez até agora no Brasil para criar produção brasileira para as redes internacionais de TV por assinatura. O artigo 39 gerou no ano passado 17 milhões de reais. Destes, quase 13 milhões de reais foram colocados por uma única rede (HBO) em dois únicos projetos brasileiros. Os outros 4 milhões de reais foram divididos por 14 outros projetos. Pelo menos dois destes incorrem no mesmo tipo de fraude que foi denunciada agora: não constituem propostas originais dos produtores, mas uma forma de as programadoras substituírem recursos próprios que seriam colocados em suas produções normais, pela utilização do dinheiro público brasileiro com este fim.

Arrogantes e fechadas

Quando se institui instrumentos como o do artigo 39, isso não acontece para que se tente criar qualquer tipo de ingerência ou controle sobre a programação de qualquer rede de televisão. A problema começa no fato de que as redes internacionais são internacionais apenas para vender programação, mas não para comprá-las. Elas simplesmente não costumam operar com programação internacional, exceto em raríssimos casos – tão raros que viram notícia em jornais.

Isso não é justo com os assinantes, muito menos com os produtores, e está longe de colaborar para a identidade cultural dos países que elas alcançam (que constituem praticamente todos os países do mundo). Tal não se dá por falta de condições das fontes de produção na maioria desses países, mas por puro preconceito.

As redes, que são distribuídas internacionalmente, acreditam que só duas ou três fontes de produção têm condições de alcançar o padrão que elas desejam. Já seria um erro se esse padrão fosse tão bom quanto supõem as redes; e é um absurdo quando se vê o nível de banalidade que elas de fato entregam. O que há, na verdade, é uma forma de censura defensiva a que um número maior de produtores – em um número maior de países – possa participar da programação de redes que na maioria dos casos terceirizam quase tudo o que elas produzem.

Fariam bem se terceirizassem também o que elas pensam. Não apenas não fazem isso, como as decisões sobre programação (e a decisão sobre a utilização de recursos gerados pela Ancine, a partir de receitas obtidas no Brasil) é geralmente tomada fora do país, a partir de critérios bastante nebulosos, até mesmo dentro de suas corporações. A própria HBO Latin America acaba de ter cinco de seus principais executivos demitidos por comprovação de fraudes na venda de espaço comercial.

Redes internacionais que já investiam dinheiro bom na produção brasileira deixaram de fazê-lo à espera do dinheiro incentivado. Se isso é uma tentativa de desmoralizar o artigo 39, estão conseguindo. Adicionalmente, estão conseguindo também enfraquecer suas próprias programações, mediocrizar seus desempenhos e tornando-se cada vez mais parecidas entre si.

Inebriadas pelo próprio fracasso, as redes tornam-se cada vez mais arrogantes e fechadas a um diálogo que lhes beneficiaria mais que aos produtores. Por isso, quando se colocam diante de incentivos à diversificação da produção, não correm atrás das idéias que poderiam melhorar seu desempenho: voltam-se para as brechas que lhes permitam disseminar não apenas maus programas, mas também más atitudes.