Você sabe a diferença entre hegemonia e monopólio? Roberto Irineu Marinho, presidente do grupo Globo, sabe. Diante da acusação de que a Rede Globo detém o monopólio da audiência, didaticamente ensinou a diferença, em trecho das copiosas 12 páginas de entrevista publicada na última edição da revista Tela Viva (leia a íntegra aqui). ‘É indispensável entender a diferença entre hegemonia e monopólio. O que temos – diz ele – é audiência, que o telespectador elege, segundo a segundo, com o controle remoto’.
O entrevistador contestou lembrando que a audiência da Globo, seja por mérito dela ou demérito das outras, cria uma distorção de mercado, e que há casos em que o governo intervém exatamente para corrigir distorções como essa, como ocorre nas fusões. Resposta de Roberto Irineu:
‘Na história da TV Globo nunca houve a fusão de dois grupos fortes para garantir a preferência do público. Ao contrário. Começamos mais fracos que as TVs pré-existentes e fomos conquistando o público dia a dia. Concorremos no Brasil com grupos economicamente muito mais vezes mais fortes do que nós, que distribuem seus conteúdos em várias TVs abertas e fechadas. Muitas vezes os telespectadores optaram pelos conteúdos oferecidos por outros grupos de comunicação e nós perdemos audiência e faturamento. E muitas vezes trabalhamos duro e retomamos a preferência e a audiência. A exemplo do que ocorre na maior parte do mundo, o que o governo precisa fazer é criar estímulos para que mais grupos de mídia nacionais se fortaleçam, e jamais admitir a hipótese de enfraquecer qualquer grupo nacional (…)’.
Perfeito, né?
Nem tanto, se fizermos uma segunda leitura sem os pressupostos que falsamente induzem à concordância com os argumentos do presidente do grupo Globo. Em primeiro lugar, hegemonia é uma coisa, monopólio é outra, certo? Errado. A hegemonia de audiência da Globo é decorrência das benesses de que a emissora gozava do poder autocrático desde sua fundação – para atuar como braço oficioso do regime militar – em meados da década de 60. A audiência majoritária se consolidou logo no início dos anos 70 e nunca mais caiu significativamente. Através de mecanismos como o incentivo à formação de uma sólida bancada parlamentar de apoiamento, a manutenção da legislação que regula o mercado audiovisual vem sendo assegurada, sem arranhões.
Até hoje, a legislação brasileira não tocou sequer de leve, por exemplo, na questão da propriedade cruzada (mecanismo pelo qual se limita a possibilidade de um mesmo grupo dominar, numa mesma área geográfica, ao mesmo tempo, emissoras de rádio e TV, e títulos de jornais ou revistas). Dessa forma, a hegemonia de audiência da Globo se configura numa forma de monopólio, sim, uma vez que o poder concedente – o Estado – não delimita os campos de atuação da emissora-líder, quando não fosse, pelo menos para evitar uma tão significativa concentração de poder.
Em outros países, essa é uma questão de Estado. Um exemplo: só muito tempo depois que o Jornal Nacional já estava no ar, cobrindo todo o território brasileiro, foi que a Itália, de acordo com severas condições, permitiu a existência de seu primeiro telejornal coast to coast. Na maioria dos países europeus e nos Estados Unidos, existem mecanismos para evitar que um determinado grupo econômico domine com exclusividade a audiência (da TV e do rádio) ou a tiragem dos jornais e revistas. E há gatilhos de segurança que disparam cada vez que uma determinada rede ou empresa atinge níveis, digamos, preocupantes, de audiência ou tiragem.
O receio de deixar numa única mão poder de tal magnitude induz à adoção de medidas de prevenção. O que não tem nada a ver com censura ou restrição à livre iniciativa, pelo contrário, já que oxigena o cenário para a entrada em cena de outros atores, exorcizando o risco da uniformização do pensamento. O problema é que desde a década de 70, ou seja, há 35 anos, a liderança de audiência da TV Globo nunca foi significativamente arranhada. Resultado: o comando da emissora-líder sequer admite a hipótese de ver um dia este quadro alterado. Quando Roberto Irineu fala que o governo deveria fortalecer outros grupos nacionais de mídia em vez de enfraquecer a Globo, se esquece de acrescentar que a audiência é inelástica. Para crescer aqui, obrigatoriamente terá de cair ali. É como numa eleição: nenhum candidato cresce se não tirar votos de alguém.
É compreensível que Roberto Irineu, com as duas mãos no manche do belo boeing dos Marinho, tenha mesmo é que defender o leite das crianças. Mas, quando recusa a existência de distorções no mercado (e para justificar tal posição invoca o direito à livre competição, lembrando que a Globo não faz dumping), termina denunciando a inconsistência da própria premissa na qual se baseia. Claro que não há dumping, claro que não há concorrência desleal, do ponto de vista legal, claro que a Globo atua nos limites da atual legislação.
Verdade absoluta
Mas, na medida em que essa ‘hegemonia’ foi conquistada com a ajuda generosa de um poder arbitrário, mantida pela conveniência de políticos que não querem se expor ao risco de enfrentar o maior conglomerado de mídia da América Latina, e produz hoje alguma coisa próxima do absolutismo da audiência, fica evidente que alguma coisa está errada. Errada não na própria atuação da Globo, mas nas regras que permitiram chegar-se à atual legislação (mantida, em sua essência, pela ação de poderoso lobby durante a Assembléia Nacional Constituinte, há 20 anos).
Roberto Irineu invoca o direito à ‘qualidade’ para justificar a intocabilidade da legislação que garante e sustém os níveis de penetração popular da Rede Globo. Ninguém nega um excelente padrão de qualidade, seja no telejornalismo, seja na teledramaturgia da TV Globo, reconhecido até internacionalmente. Segundo ele, ‘punir uma empresa pelo seu sucesso me parece inaceitável. Não falo como Roberto Irineu, presidente da Globo, mas como cidadão e pai de família. Não poder oferecer o melhor a meus filhos é abuso’.
Mas, de que ‘qualidade’ estamos falando? Da ‘qualidade’ definida por Roberto Irineu, que tem por base um certo ‘sucesso’, convertido em resposta da audiência? Neste caso, devemos entender que os big brothers, por exemplo, seriam uma opção de ‘qualidade’, haja vista os níveis estratosféricos de audiência que atingem. E por isso a emissora que os exibe precisa estar protegida contra alguma interferência nefasta que ameace este ‘padrão’ exibindo alguma coisa pior…
Não achar que a audiência conquistada ‘deva sofrer limitações, como sofrem outros mercados quando existe excessivo domínio de um player‘ (como diz o texto de abertura da entrevista de Roberto Irineu na Tela Viva) é partir do pressuposto de que existe uma verdade absoluta (quase escrevia ‘uma verdade divina’) e ela está com a Globo. E, se existe qualidade, esta qualidade é oferecida exclusivamente pela Globo. Nesse caso, o melhor então é não mexer com as coisas de Deus.
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Jornalista, professor e pesquisador em Comunicação. Esta coluna faz parte de seu projeto acadêmico na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília. E-mail: paulojosecunha@uol.com.br; site: caid.sites.uol.com.br