Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

É simplista abrir mão de um direito

‘Quinhentos canais e nada para ver’ é o que afirma o dito popularmente difundido. Cada vez mais a televisão é alvo de críticas contundentes oriundas dos meios intelectualizados. Mesmo entre os telespectadores mais assíduos, ouvimos críticas ao veículo, especialmente à falta de bons programas, embora esse ‘bom’ pareça muito mais uma questão de gosto. Ainda assim, as audiências estão aumentando e a televisão permanece a mais importante mídia eletrônica do país, movimentando muito dinheiro e exercendo um poder inigualável na sociedade brasileira.

No Brasil, a televisão nasceu sob a marca do entretenimento – palavra criticada quando falamos em televisão. Em poucos anos, a TV ganhou fama e se difundiu Brasil afora. A hipnose massificante, na visão de alguns, tomou conta das classes menos intelectualizadas e o Brasil real passou a ser representado na telinha. Nos anos 70 e 80, a TV se tornou a principal mídia eletrônica brasileira, agente da unificação do país, geradora de uma identidade nacional. O sistema broadcasting, formando as redes, sobrepôs o nacional ao regional e o Brasil real passou a ser aquele reproduzido a partir de um determinado ponto de vista que informava e entretinha a maioria da população, especialmente nas telenovelas, um gênero que com o tempo se tornou ‘genuinamente brasileiro’.

Há décadas, na televisão, nada faz mais sucesso do que as telenovelas, uma produção que tem uma espécie de linha direta com o telespectador. Sua origem mais remota está no folhetim (1836). Depois, o folhetim passou para o rádio, originando a radionovela, que teve Cuba como berço. Na década de 30, nos EUA, a soap opera (ópera de sabão, porque era patrocinada pela indústria cosmética) vendia ilusões em arrebatados dramalhões, não havendo qualquer comprometimento com a realidade. O que tornou a soap opera popular foi o grande incentivo da indústria, que via nas mulheres um forte público consumidor. Percebia-se a mulher como uma consumidora em potencial e o universo feminino povoado por expectativas que podiam ser exploradas ficcionalmente por uma narrativa específica.

Já no Brasil, em 1951, estreou a telenovela Sua vida me pertence, de Walter Foster. Foi o início de uma produção que permaneceu até 1963 como um evento apresentado duas vezes por semana e com duração média de vinte minutos. Na década de 60, a televisão começou a se solidificar como veículo de massa. Foi quando surgiu a telenovela diária, um produto de massa que transformou o cotidiano das famílias. Inicialmente, os melodramas eram fantasiosos, de origem cubana, mexicana ou Argentina, mas, com o tempo, foram se inserindo na realidade, sofrendo um ‘abrasileiramento’. O realismo dos autores visava retratar e discutir a realidade brasileira. São as telenovelas ‘realistas’, que ampliaram o público masculino.

Com o investimento da Globo em teledramaturgia, criou-se uma produção de cultura industrializada, unindo planejamento e estrutura organizacional. O sucesso da Globo com as telenovelas foi um dos fatores que contribuíram para a queda e o desaparecimento de outras emissoras. A telenovela tornou-se um gênero artístico ‘genuinamente brasileiro’.

Com as telenovelas e os programas de auditório, a televisão se tornou um espetáculo coletivo coordenado por poucas emissoras, em situação de oligopólio, por vezes beirando o monopólio se pensarmos no poderio da Rede Globo nessas últimas quatro décadas. Nos anos 90, algumas experiências isoladas, como as da TV Manchete e do SBT, chegaram a incomodar a Globo, mas nada que a tenha ferido demais. Embora separadas por um abismo de audiência e investimento publicitário, Globo e SBT dividiram, especialmente nos anos 90, a liderança e as críticas. Hoje, o SBT parece estar sem rumo. Silvio Santos parece estar meio perdido. O homem que sempre soube dar os passos certos em seus empreendimentos, especialmente no SBT, não está conseguindo encontrar uma saída para a crise que vive a emissora. A pobreza em que se encontra a programação do SBT é espantosa. Se continuar nesse ritmo, a TV de Silvio Santos vai declinar ainda mais na média de audiência, caindo para 3º ou 4º lugar.

Bem mais precioso

É certo que a história do SBT é marcada pela inconstância e falta de um padrão. Talvez a identidade da emissora seja justamente a sua falta de identidade, criando apenas uma identificação com o seu dono e mentor – Sílvio Santos. Ainda assim, o SBT foi pioneiro em muitas ocasiões. Basta lembrarmos de Programa Livre, TJ Brasil, Jô Soares Onze e Meia, Aqui Agora e outros. Mas a crise é tão profunda que nem mesmo o tradicional Programa Silvio Santos, carro-chefe da emissora durante décadas, está conseguindo sobreviver. As alterações dos horários e dos nomes dos programas são constantes. Mudam os nomes, mas os programas parecem os mesmos. O público que sempre foi fiel ao apresentador parece estar descobrindo outras alternativas, novas paixões. Assim como Silvio, outros artistas estão desgastados, como Hebe, Ratinho e Carlos Alberto de Nóbrega. O único que sobrevive imbatível é Chaves, um fenômeno de audiência que passa de geração para geração, merecedor de um estudo acadêmico sério.

As principais críticas à televisão se baseiam nas idéias de oligopólio e formação de uma massa uniforme de consumidores. Essa visão determinista em relação ao público, nos últimos tempos, vem sendo desconstruída. Especialmente intelectuais latino-americanos vêm demonstrando as relações edificantes geradas entre a televisão e seu público, que também não é tão passivo como se pensava. Ainda assim, prevalece a idéia de que a TV nos mantém na Caverna de Platão e sua imagem reproduzida é como uma sombra em nossas vidas de acorrentados, vislumbrando um simulacro. Envolvidos pelo lúdico (e gratuito), consumimos a programação televisiva sem nos preocuparmos com o que estamos vendo, como um passatempo alienante que nos idiotiza.

Por outro lado, sentimos a televisão como um veículo que nos mantém conectados aos outros, numa espécie de laço social simbólico-eletrônico. O problema é que no afã de nos emocionar, a carga dramática (forma) televisiva pode terminar por superar a informação (conteúdo). E a informação é o que de mais precioso podemos receber. Mesmo naquilo que consideramos puro entretenimento, a informação está presente; e é justamente isso que torna a televisão tão importante: a sua capacidade monumental de transmitir informações a tantas pessoas de forma simultânea e sedutora.

TV paga e desmassificação

A informação é a resposta a uma questão formulada, uma novidade verídica que reduz a incerteza e nos ajuda no processo decisório. Assim, ao nos levar a tomar uma decisão ou à ação, a informação se torna poder. Poderíamos dizer que a informação sedimentada na memória gera o conhecimento e o desenvolvimento humano, contribuindo para a organização social. Mais do que nunca, a informação é a chave para a sobrevivência em nossa sociedade informatizada. Compreender sua natureza e significado é o primeiro passo para podermos controlá-la e utilizá-la para o progresso social e individual. Não podemos desvincular a informação da comunicação, tampouco da televisão.

Mesmo que não queiramos receber informação alguma, ainda assim a encontraremos até mesmo num jogo de futebol transmitido. Ela é a base que forma a programação e esta, por sua vez, é a matéria prima da televisão.

A programação, segundo Nelson Hoineff, é fonte de ordem e desordem. Num veículo que pretendia atingir a todos, o nivelamento acaba por ser rasteiro: ‘ O que a televisão por broadcast tem de mais fascinante para quem a faz é justamente o que ela tem de mais nocivo para quem a vê: sua capacidade leonina de falar unilateralmente para as massas, de seduzi-las e motivá-las com o mais banal dos truques. (…) a mística da audiência é a mística do sucesso. Na mídia de massa, o sucesso é o padrão definitivo de avaliação do produto (…) o espectador-mercadoria prevalece sobre o espectador cidadão.’

A televisão aberta, em contraposição à TV segmentada, vende o próprio telespectador; já a TV segmentada vende a programação ao telespectador. O crescimento desse segmento conduz a uma desmassificação, priorizando o tipo de informação que os públicos desejam – os públicos que possam pagar por isso.

Serão mesmo públicas?

Por mais anunciada que seja a morte da TV aberta, em função do crescimento dos canais pagos, esta ainda não é uma realidade no Brasil, até porque os sistemas pagos não encontraram a melhor forma de operar por aqui. Por enquanto, em termos de qualidade, a TV paga enfrenta problemas semelhantes à TV aberta: ‘500 canais e nada para ver’. O mérito da TV segmentada é a busca por conhecer seu telespectador, suas necessidades e desejos. A TV aberta, por querer falar a todos ao mesmo tempo, acaba por minimizar a capacidade de discernimento do telespectador. Sem conseguir identificar os gostos de sua audiência, simplesmente determina esses gostos.

Hoineff também nos afirma que a televisão nunca se levou a sério, pois sempre foi um veículo refém e vítima dos que a controlam. Esses controladores nunca tiveram interesse em transformar a TV em algo que transcendesse interesses mesquinhos. O autor nos desafia a refletir sobre como acreditar que, num mesmo horário, milhões de brasileiros queiram ver a mesma coisa. A TV aberta acredita. A recente audiência da telenovela Senhora do destino parece comprovar essa tese. Mas deveríamos nos perguntar, que outras opções de programação o público tem? A que outras atividades de passatempo gratuitas esse público tem acesso?

Hoje, de modo geral, temos uma programação que se esgota em si mesma, é de consumo imediato. Porém, existem algumas iniciativas que por saírem da mesmice merecem destaque, como a experiência do programa Cena Aberta, que foi produzido pela Casa de Cinema de Porto Alegre e pala Globo, em 2004. Em meio à horizontalidade da programação televisiva, nos deparamos com essa novidade.

Temos outros destaques, como Provocações (TV Cultura), Sítio do pica-pau amarelo (Globo), Sem Censura (TVE-RJ), Roda Vida (TV Cultura), Dois a Dois (SBT), algumas minisséries excepcionais, como Os Maias (Globo), entre outros. Mesmo as telenovelas, quando querem, conseguem realizar bons exemplos de serviço público, como aconteceu em O clone. É interessante observarmos que alguns programas aqui citados fazem parte das chamadas TVs públicas. Mas serão mesmo públicas?

Um serviço público

A TV Cultura se autodefine como emissora pública, e assim é reconhecida. Porém, as sucessivas crises financeiras da emissora apontam para a falta de recursos. Deveriam ser esses recursos oriundos do estado de São Paulo? Se essa for a resposta, então a Cultura é mais estatal do que pública, pois sua sobrevivência dependeria de recursos governamentais.

‘O termômetro que mede a democracia numa sociedade é o mesmo que mede a participação dos cidadãos na comunicação’, afirmava Herbert de Souza. A observação de Betinho é uma verdade constantemente esquecida. Uma mídia que não permite a participação dos cidadãos, que não abre um canal realmente interativo, é uma mídia que não se abre à realidade e aos valores de uma nação, mas os impõe de forma subjetiva.

Tratamos da televisão como se precisássemos suplicar aos seus ‘donos’ que atendam a nossas reivindicações por qualidade e ética. Quase sempre nos esquecemos de que a televisão, legalmente, não tem ‘donos’, mas concessionários de um serviço público cujas prioridades devem ser a informação, a educação e a formação. Ainda, todos os cidadãos têm direito à informação e à comunicação, devendo poder se expressar. Parece que estamos falando de alguma coisa utópica, longe da realidade. Mas, na verdade, trata-se da lei e do dever ético. Na obra Mídia & Democracia (2005), os autores Pedrinho Guareschi e Osvaldo Biz lançam um olhar crítico sobre o problema da contradição existente entre o direito humano à informação e à livre expressão e a prática brasileira tão distante desse direito. Uma pesquisa realizada pelos autores aponta que, entre a população, não há consciência de que a televisão é um serviço público, concedido por tempo determinado a quem possa prestar esse serviço à população. Ou seja, o concessionário não possui um meio, mas é o seu gestor, embora não haja esse entendimento entre os ‘donos’ da mídia.

A televisão, que deveria ser a mediadora, tornou-se o meio, transfigurado na própria mensagem.

Os verdadeiros ‘donos’

Temos ouvido muitos discursos sobre a televisão do futuro. Os mais otimistas apontam para as maravilhas da TV digital e seu potencial interativo. Fala-se da pluralidade dos canais segmentados, que poderemos escolher os nossos programas preferidos e assisti-los na hora que quisermos; enfim, serão muitos os benefícios.

Mas continuamos a correr o risco dos ‘quinhentos canais e nada para ver’. Como normalmente acontece, nos fixamos na quantidade e não na qualidade, no conteúdo. Essa nova televisão permitirá maior participação do cidadão no planejamento, avaliação e reflexão sobre a construção da sociedade que queremos? Conseguiria a televisão se tornar a ágora contemporânea? Permitirá a pluralidade de pensamentos, abrirá um canal direto para a expressão dos diferentes setores sociais? Será uma televisão que fomenta uma educação para a crítica, capaz de usar o entretenimento de forma educativa? Ou será apenas uma nova tecnologia embalando o velho modelo?

Seria muito mais cômodo acreditarmos que a televisão é essencialmente entretenimento barato, que não tem nenhuma função pública. Simplesmente poderíamos aceitar passivamente tudo o que recebemos e usar o zapping ou power off como proteção. Mas esse pensamento amplamente difundido é traiçoeiro e simplista; nos induz a abrirmos mão de um direito constitucional, nos afasta do real poder que temos nas mãos à medida que somos os verdadeiros ‘donos’ da televisão; nos afasta do exercício da cidadania e da democracia, fazendo da televisão ‘um canhão usado para matar passarinho’.

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Jornalista, mestre em Comunicação, Porto Alegre