Na terça-feira (17/01) estreou, pela Rede Globo, a minissérie O Brado retumbante, escrita por Euclydes Marinho e protagonizada pelos atores Domingos Montagner e Maria Fernanda Cândido. A trama em questão aborda o dilema de Paulo Ventura, presidente da Câmara dos Deputados que assume inesperadamente a presidência da República após as mortes do presidente e do vice-presidente em um acidente aéreo.
Embora tenha uma vida pessoal atribulada (vive uma crise conjugal e tem um relacionamento difícil com os filhos), Ventura é um político extremamente ético e não abre mão de seus ideais. Sua intenção ao assumir o controle do país é extirpar a corrupção que impera na arena política. “Ele [Paulo Ventura] aceita ser presidente da Câmara porque é um sonhador, meio quixotesco. Quer mudar a situação do país, mas não é um homem da política, não sabe fazer alianças e, como só tem 15 meses no poder, decide que seu lema será banir a corrupção”, afirmou Domingos Montagner sobre seu personagem.
Apesar de O Brado retumbante ser uma obra ficcional e retratar, principalmente, o “lado humano do presidente da República”, segundo palavras do próprio autor; era inevitável que certas características (negativas) da política brasileira também fossem mencionadas na minissérie. Alline Dauroiz, repórter do jornal O Estado de São Paulo, apontou que a trama conta com toda sorte de figuras que o Brasil está acostumado a ver na política: um senador que não quer largar o osso do poder, um ministro corrupto e deputados que compram falsos dossiês e articulam conspirações.
“O pessoal só tem opinião sobre futebol e escola de samba”
Entretanto, chama a atenção o fato de a minissérie procurar, exaustivamente, demonizar a esfera estatal, prática bastante difundida pelas classes dominantes do Brasil (e, consequentemente, adotada pela Rede Globo). Não sejamos ingênuos, toda obra de ficção global traz, implicitamente, a tentativa de criar uma “verdade”. O Estado, ao dificultar a livre circulação de capitais e mercadorias, consiste em importante entrave para as atividades comerciais e financeiras das classes dominantes. Não obstante, os gastos estatais em serviços públicos como saúde e educação (insuficientes no Brasil, diga-se de passagem) não agradam aos especuladores financeiros (poderosos parceiros dos grandes conglomerados midiáticos). É preciso, então, deslegitimar a esfera pública.
Dessa forma, busca-se transformar o Estado em reino de todos os vícios, politicagem, ineficiência e corrupção; e, por outro lado, idealizar o mercado como o reino de todas as virtudes – competência, eficiência, razão técnica supostamente no interesse de todos. Segundo esta acepção, corroborada por parte do pensamento histórico-sociológico brasileiro e difundida compulsivamente pela grande mídia (basta lembrar que as marchas anticorrupção são um dos assuntos mais mencionados na imprensa), todos os problemas sociais ocorrem devido à corrupção exclusivamente estatal, como se não houvesse práticas ilícitas nos meios privados.
Curiosamente, em nenhum momento da minissérie, a corrupção na esfera política esteve associada aos interesses mercadológicos de grandes empresas nacionais ou estrangeiras. Tampouco foi mencionado o desvio de dinheiro público para o setor financeiro.
As palavras proferidas pelo ministro Floriano Pedreira (interpretado pelo experiente ator José Wilker) durante o primeiro capítulo da minissérieO Brado retumbante resumem, emblematicamente, o pensamento das classes dominantes no Brasil: “Este não é um país para principiantes. Este é um país único. Nós não estamos nos Estados Unidos, com aquela gente loira, de olhos azuis, protestantes. Nós somos um país mulato, cheio de ginga, informal, sem regras. […] Este é um país de analfabetos, o pessoal aqui só tem opinião sobre futebol e escola de samba.”
O perfil de um pré-candidato às eleições de 2014
Como a ideologia dominante em uma sociedade corresponde ao pensamento da classe dominante (lembrando a clássica definição marxiana) e os meios de comunicação de massa influenciam de forma peremptória o comportamento e a formação intelectual de seus receptores, formam-se, assim, no inconsciente coletivo do brasileiro, acepções como “todo político é corrupto”, ou “o brasileiro é desonesto por natureza”.
Evidentemente, seria demasiadamente controverso acreditar que não haja corrupção e desonestidade no Brasil. No entanto, é importante ressaltar que a corrupção não está localizada apenas na alçada estatal. Lembrando as palavras do sociólogo Jessé Souza, “a grande corrupção no Estado está sempre ligada a corrupção no mercado. A fraude é uma marca normal do funcionamento do mercado capitalista sempre que este não seja regulado”.
Em última instância, qualquer manifesto anticorrupção deve passar, inexoravelmente, pelo questionamento do sistema econômico vigente. O capitalismo, ao colocar o lucro como objetivo a ser alcançado a todo custo, e ao pressupor que os interesses individuais se sobreponham aos interesses da coletividade é, inerentemente, corruptível.
Para finalizar este texto, é interessante fazer uma ressalva: o perfil do paladino Paulo Ventura – jovem, midiático e mulherengo – não lembra o perfil de um pré-candidato às eleições presidenciais de 2014? Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência?
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[Francisco Fernandes Ladeira é professor universitário, Barbacena, MG]