Se há crise na TV aberta brasileira, a crise mundial nunca foi tão fértil para a TV paga. O capitalismo nos traiu e provou ser incapaz de gerenciar a humanidade. Não se deve deixar nas mãos de homens por essência gananciosos os rumos da História. O mundo mudou, perdeu a inocência, e a TV foi atrás. Não a nossa que, tirando exceções, vive uma falência criativa e moral sem precedentes.
Sai Sex and the City e a futilidade da era derivativos e gastança pré-2008. Afinal, faliram. Ninguém mais quer ver mocinhas tomando Cosmopolitan e discutindo a compulsão por comprar sapatos. A sordidez da série Mad Men, símbolo da crise de confiança, da hipocrisia nos negócios e da dubiedade do caráter de homens e mulheres que fumam sem parar e bebem no trabalho, fez escola. Os publicitários da agência Sterling Cooper Draper Pryce ganharam concorrentes, como as séries Homeland, Boss, Os Bórgias e Boarwalk Empire.
O que se quer ver agora é visão crítica da sociedade de consumo, vícios verdadeiros, personagens que mesclam bons valores com passado condenável, corrupção do poder, decadência do discurso politicamente correto e sexo, muito sexo. Livres da censura, por mearem horários da TV paga, até o papa Alexandre VI (Jeremy Irons) apareceu na série da BBC traindo a esposa e fornicando com a vizinha, enquanto por aqui ainda discutem o beijo gay na telinha.
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Já virou praxe, numa festinha, o pessoal na cozinha indicar a série de TV imperdível. São lembrados os melhores episódios de Seinfeld, as frases inesquecíveis de Charlie (Charlie Sheen) de Two And a Half Men, ou quem é mais gata no duelo milionário entre loira e morena no sitcom de dez temporadas Friends, Rachel (Jennifer Aniston) ou Monica (Courteney Cox). No último Natal, não foi apenas a garotada da minha família que enumerou as séries preferidas. A vechiata também. E não se fala mais sitcom. O fenômeno das séries desembarcou com tudo no Brasil. A popularização do cabo e seus gatos mostrou um tipo de TV de cair o queixo e em evolução.
Explica-se. O produtor de um filme fica com 20% do faturamento bruto em média. Foram antes descontadas as fatias de divulgação, distribuição e exibição. É nesses 20% que estão os cachês de atores, roteiristas, técnicos, custos de produção, locação, viagens, equipamentos, impostos etc. Pois grandes exibidoras de TV a cabo perceberam que, se produzissem o próprio material, tinham na conta 100% do bruto, já que elas mesmas divulgariam, distribuiriam e exibiriam.
O mercado se mesclou. Exibidores como HBO, TCM, Showtime, BBC se firmaram como produtores. Grandes estúdios viraram exibidores. Se associaram com outros, antigos concorrentes, como a rede Telecine, da MGM, Paramount, FOX, Universal e, agora, Disney, que levou a Pixar e a DreamWorks. O resultado foi a migração do pessoal do cinema para a TV, de diretores a roteiristas.
No último Globo de Ouro, as equipes de longas indicados batiam um rango e se embebedavam ao lado das equipes de séries de TV indicadas, como Homeland, Boss, Game of Thrones, Boardwalk Empire, Downton Abbey. Em Boss, está na direção e produção Gus Van Sant. Em Boardwalk, Scorsese.
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Minhas dicas:
1. Homeland é a surpresa do ano. Baseada na série israelense Hatufim, Claire Danes faz Carrie Mathison, agente bipolar de operações da CIA, que acha que o sargento Brudy (Damian Lewis), fuzileiro americano que ficou anos prisioneiro da Al-Qaida, mudou de lado e representa um perigo à segurança nacional. A série é de prender o fôlego. Em todo momento, duvida-se do caráter de um herói fabricado. E, o mais incrível, levanta a questão: é possível um soldado americano exemplar ser convertido pela organização terrorista tão odiada e se tornar um muçulmano praticante? Ela ganhou o Globo de Ouro de melhor série dramática, e Claire, melhor atriz.
2. Se você acha que já viu tudo na TV sobre manipulação política, Boss – série sobre o populista prefeito Tom Kane de Chicago, que tem uma doença grave, uma filha viciada e um casamento de fachada – o surpreenderá. Kelsey Gramnmer, o protagonista, ganhou melhor ator.
3. Na onda sexo-podridão-no-poder, tem Os Bórgias, sobre a família do papa mais polêmico, que enfrentou seus inimigos sem a poesia e plasticidade da Renascença.
4. O ideal seria assistir em seguida às quatro temporadas de The Tudors, sobre Henrique VIII, seu temperamento afiado, o mulherio e o rompimento com o papismo, inaugurando o absolutismo europeu e a Reforma. Também com muito sexo, anti-heróis, conchavos e golpes. Série histórica que, de tão acurada, parece ter sido baseada no site Wikipédia.
5. Downton Abbey, que se passa no começo do século passado, é mais puritana. Mas mostra a decadência da aristocracia inglesa, ou melhor, a sua transformação. Com muita futrica e casamento. É série de menina.
6. Pan Am, série da Sony protagonizada por aeromoças dos tempos em que a profissão oferecia mais glamour do que barrinha de cereal, apresentada como a versão feminina e uma resposta ao chauvinismo indisfarçável de Mad Men, é uma bobagem. Não pegou.
7. Delírio, criatividade, roteiros primorosos, personagens e atores inesquecíveis mostrou a HBO. No primeiro episódio de Game of Thrones, baseado no best-seller de George Martin, um casal de irmãos num ato sexual é flagrado por um menino, herdeiro do principal assessor do rei. Eles o derrubam da janela. O terceiro irmão é um anão mulherengo e carismático. Um bon vivant esperto, renegado pela família, vivido pelo ator Peter Dinklage, prêmio de melhor ator coadjuvante. Pegou. A segunda temporada da série já está em produção. Como também as de Homeland e Os Bórgias.
Este ano, a galera de Mad Men, que faturava todos os prêmios nas edições anteriores do Globo de Ouro, se embebedava nos estúdios da produtora Lionsgate Television, gravando enfim a quinta temporada da série, que reestreia domingo, dia 25 de março, nos EUA.
O site HuffPost juntou o elenco com o criador Matthew Weiner, para descobrir que todos acham que a temporada em produção é a melhor de todas. Melhor ainda? Uau…
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[Marcelo Rubens Paiva é escritor]