O talento humorístico de Chico Anysio nasceu, cresceu e se fermentou no rádio, veículo que foi autêntico catalisador da linguagem humorística brasileira. As técnicas que produzem o riso são universais, mas a linguagem humorística, aquela irreconhecível sintaxe silenciosa que fica por trás de toda piada, é peculiar a cada povo. A linguagem humorística brasileira se caracteriza, entre muitas outras coisas, pela paródia. Mas não é uma paródia no sentido original do termo, que é de “canto paralelo”. Mais do que isto, é uma paródia da própria realidade, que o crítico Paulo Emílio Salles Gomes vislumbrou ao dizer que a chanchada resultava daquela “nossa incapacidade criativa de copiar”. A vida do brasileiro é tão cheia de incongruências que, para rir, basta fazer uma paródia da vida real. A linguagem humorística brasileira nasce como forma de catarse de uma sociedade de excluídos, baseada no personalismo recalcado, que esconde uma ansiedade medrosa da impessoalidade abstrata da lei.
Todos os grandes cômicos utilizavam-se de ganchos, verbais ou gestuais. Jack Leonard pontuava as piadas dando um tapinha malicioso na própria barriga. O de Bob Hope era uma espécie de tique, quando dizia “esta eu tenho que contar”. Já Lenny Bruce terminava suas piadas com o clássico “Gozou?” Neste campo, Chico Anysio merecia o indiscutível título de professor emérito, pois explorou aos limites empedernidos todos os procedimentos cômicos nas centenas de criações que personificou. Desde aquele célebre “Tenho horror a pobre!”, de Justo Verissimo, passando pelo “Affe, eu tô morta”, de Painho, até o “Não garavo” de Alberto Roberto – todas conjugavam a energia de uma harmoniosa invenção mímica com bordões que eram curtos-circuitos verbais.
Sobrou espaço para este humor representado por Chico Anysio? Sua morte representa também a morte deste tipo de humor? Não necessariamente, pois seus procedimentos cômicos são universais. Fazem parte daquelas máscaras cômicas clássicas, de Carlitos a Groucho Marx.
“Humor dá aos poetas diploma de humorista”
Mas o humor televisivo deixou de lado estas técnicas, tornou-se autorreferente, olha apenas para o seu próprio umbigo, recorrendo abusivamente à maior praga da lavoura humorística: a edição e a montagem. Já o stand-up de hoje, em que pese a qualidade de muitos de seus comediantes, é residual no que se refere aos procedimentos cômicos, pois são raríssimos os humoristas que conjugam o solavanco verbal da piada com os trejeitos cômicos do clown ou com bordões criativos. É humor de rádio, meio manquitola, já que se esqueceu da pantomina do teatro e da energia do circo. É certo que tudo isto pode ser, com o tempo, corrigido e aperfeiçoado, até mesmo conhecendo e estudando melhor o extenso patrimônio humorístico brasileiro.
Mais grave é que a comédia de hoje esqueceu-se da vocação fundamental do comediante, que é o rir de si próprio. A culpa é do ambiente “politicamente correto”, dizem alguns. O “politicamente correto” sempre existiu em sociedades que viveram momentos distópicos, quando a ausência de cenários futuros deixou de ensejar padrões morais estáveis. O resultado é um moralismo nervoso que se manifesta aqui e ali, meio esquizofrênico, que não sabe bem a que veio e, na história, nunca resultou em boa coisa. Quando Angèly, o ultimo bobo da corte da monarquia francesa, foi despedido (por uma piada daquelas desferidas abaixo da cintura) a corte nunca mais riu, reprimindo a comédia até a explosão revolucionária de 1789. Chico Anysio, José Vasconcelos, Costinha, Ronald Golias, Jô Soares (assessorado pelo talentosíssimo Max Nunes) faziam piadas sexistas, machistas, misóginas, preconceituosas. Faziam graças nascidas das desgraças do povo. Mas sempre na pele de suas personas cômicas, sutilmente transformistas, sempre reversíveis, engrossando ainda mais a extensa fila destes humoristas por vocação, desta gente que percebia que a educação sentimental do brasileiro só poderia começar com uma boa anedota.
Talvez a única forma de retomar a energia deste riso e livrar-se da censura do politicamente correto é colocar as piadas, aforismos e boutades no espaço mais elevado da comédia, que é a auto-ironia, pois a forma superior do humor, a mais sublime, é aquela que sabe rir de si própria. “O objetivo da piada não é degradar o ser humano, mas mostrar que ele já é degradado”, dizia George Orwell. O próprio Chico Anysio sabia disto, quando escreveu, em 1979: “O humor acusa, satiriza, descobre, desmoraliza, critica, eleva, deforma, informa, destrói, constrói, imortaliza, enterra, acaricia e açoita. Mas sendo ele o irmão mais próximo da poesia faz com que todos os humoristas tenham direito a uma carteira de poeta e dá aos poetas um diploma de humorista.” Este, talvez, seja o legado maior de Chico Anysio. E ele não estava contando piada.
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[Elias Thomé Saliba é historiador, professor da USP e autor, entre outros, de Raízes do riso]