“Eu vou te explicar algumas coisas sobre esse quarto que você mal conhece apesar de fazer parte da sua casa. Trata-se de cômodo simples pouco iluminado e pouco arejado. Mas uma patroa do seu tipo deve achar que uma empregada não precisa mais do que isso para sobreviver. Temos TV, que às vezes pega, às vezes não (…) Vem ver o banheiro. O chuveiro é elétrico, mas não temos água quente (…) Porque apesar das promessas a resistência nunca foi trocada. O ralo entope formando uma poça de água que inunda o banheiro inteiro. Cuidado para não escorregar (…) E o cheirinho? Ruim não é? (…) Com o tempo você se acostuma (…) A cama é uma porcaria (…) o estrado quebrado. Não se mexe muito, porque senão você acorda no chão. Alguma dúvida?”
Essa fala-manifesto precede a rendição da vilã e marca a inversão de papéis entre as antagonistas de Avenida Brasil, novela das 21 horas atualmente no ar na Rede Globo. No plano visual, o discurso é ilustrado por um tour perverso, em que Nina-Rita (Débora Falabella), ainda em seu uniforme, apresenta à patroa, a já antológica vilã Carminha (Adriana Esteves), as dependências de empregada de sua mansão no Divino, subúrbio fictício da cidade do Rio de Janeiro. A contundência da vingança é tal que Carminha, ainda que temporariamente, se submete à inversão de papéis: “Eu estou rendida. Nas suas mãos. Vou obedecer a todas as suas loucuras.”
O texto foi ao ar no capítulo de quarta-feira (25/7). É um raro “bife” de 1 minuto e 40 segundos, longo para novelas. Mas o assunto é provocativo. Afinal põe o dedo na ferida de uma instituição estrutural na sociedade brasileira: a relação patroa-empregada. Tão provocativo que interrompeu o ritmo acelerado. Avenida Brasil não nega o gênero: depois da grande virada, a narrativa ralentou.
Temas candentes
Em um país em que empregadas têm empregadas, o que não passa batido na novela, a carapuça sugerida no discurso de Nina provavelmente serve à maioria dos leitores deste artigo, que contam, ou contaram, com empregados domésticos. A novela trata de outros temas em diálogos igualmente afiados. Muitas vezes em tom irônico, na chave da comédia, ou da performance carregada, não naturalista, excessiva e melodramática, Avenida Brasil se aventura em assuntos tabu.
A novela de João Emanuel Carneiro, escrita com a colaboração de Marcia Prates, Alessandro Marson, Antonio Prata, Luciana Pessanha e Thereza Falcão, vem conquistando índices que há muito não se via. A novela se tornou assunto nas mais diversas rodas. Extrapolou o público preconceituosamente classificado como C e DE, atraindo o segmento classificado como AB, cada vez mais raro na TV aberta.
Qual é o segredo que traz o gênero de novo à atenção nacional, de uma audiência policlassista, composta de espectadores de várias gerações, moradores de diversas regiões do país e do exterior (onde é possível assinar um canal Globosat)?
Não há uma resposta única para a pergunta. Se houvesse, ela valeria ouro. Mas a fala no início deste texto é emblemática de uma característica marcante de Avenida Brasil: os diálogos afiados captam e explicitam de maneira curta e grossa conflitos em um país em geral avesso ao confronto aberto.
Com Avenida Brasil, a novela retoma, ao menos circunstancialmente, a capacidade de sintonizar temas candentes. A ausência do merchandising social que amorteceu a dramaturgia do folhetim eletrônico nos últimos anos contribui para adensar a trama, liberando os personagens para tecer comentários e desenvolver ações inusitadas.
Figurino sensual
O sucesso da novela consagra também uma nova geração de diretores. Amora Mautner e José Luiz Villamarim trabalham com colaboradores. As equipes de roteiro e direção se embaralham e se recompõem a cada nova produção, misto de realização e aprendizagem. Vários trabalharam juntos em novelas que se destacaram nos últimos tempos. Antonio Prata esteve na equipe de Bang Bang, coescrita por seu pai, Mário Prata. Amora Mautner dirigiu Cordel Encantado, novela de Thelma Guedes e Duca Rachid, que contou com diversos atores do elenco de Avenida Brasil.
A performance do elenco, a coerência dos figurinos, a eficiência da decupagem, que usa linguagem de cinema, câmera na mão, iluminação variada, valorizam o texto, contribuindo para problematizar o maniqueísmo. Na primeira fase, Nina é dark e descolada, quase inverossímil. Não anda de ônibus, trem ou metrô. Se desloca na metrópole de motoca, veículo da moda nas cidades europeias, adequado aos traçados centenários, sinuosos e estreitos. Cabelos curtos completam o figurino da personagem masculinizada que, apesar de descuidada, seduz e manipula os homens que deseja.
Já Carminha, a madrasta má, é luminosa. Suas roupas, em geral justas e com babados são brancas ou de cor clara. Às vezes uma jaqueta prateada ou uma bolsa de alça dourada bem brilhante completam o figurino da loura de cabelos compridos e escorridos. O carrão importado que ela mesma dirige também é branco, quase uma carruagem. Carminha conduziu a narrativa até aqui.
Carminha teve a oportunidade, mas não acabou com Nina. Ameaçou enterrá-la viva. A manobra da vilã cita, em versão mais branda, o recurso usado por Tarantino no cinema em Kill Bill (2003) e na TV no episódio final da quinta temporada do seriado CSI, Grave Danger (2005). Nina agora tripudia. Até quando? A graça não está na aniquilação da outra, mas na tensão permanente.
Destronada, de uniforme de empregada, cabelos cortados e tingidos de castanho, a personagem perde a força. Sem o comando dela a família de Tufão também fica sem graça. Substituindo a patroa, Nina adota o figurino branco e sensual da inimiga. É mais classuda, mas não possui o mesmo magnetismo. Sua atuação é estridente.
Na contramão
Como em outros casos clássicos, a vilã é personagem construída de maneira mais interessante. Em Vale Tudo (Gilberto Braga, 1988) Odete Roitman (Beatriz Segall) e Maria de Fátima (Glória Pires) polarizaram as atenções. Eram elas que moviam a trama, restando a personagens do bem reagir aos golpes planejados com minúcia.
A novela lança mão dos estereótipos convencionais que a ideia de novo-rico carrega, desde os tempos de Molière e O Burguês Fidalgo. Mas em se tratando do folhetim eletrônico no Brasil do século 21, a primazia é de personagens femininas.
A Verônica de Débora Bloch tripudia sobre os emergentes, que subiram tanto que chegaram à cobertura dela. Monalisa (Heloísa Périssé), a cabeleireira em ascensão, ironiza os hábitos alimentares sadios, mas sem graça, o gosto despojado e sem cor, as mulheres magras e sem carne, a festa chocha sem música da zona sul. Os moradores do Divino encarnam estereótipos do pobre, suburbano, tosco, ignorante, sem domínio das boas maneiras. Eles falam alto, gostam de cores, flores, correntes douradas, alegria, sensualidade, música ao vivo, arroz e feijão, gordura, cerveja no gargalo e chegaram para ficar.
Durante os anos 1970 e 1980, uma longa sequência de novelas se aventurou a problematizar o Brasil de maneira explícita nos títulos e/ou no uso das cores nacionais. Roque Santeiro (1985, Dias Gomes); Vale Tudo (1988, Gilberto Braga); Roda de Fogo (1986, Lauro César Muniz e Marcílio Moraes); Pantanal (1990, Benedito Ruy Barbosa); Deus nos Acuda (1992, Sílvio de Abreu); Pátria Minha (1994, Gilberto Braga), entre outras. Avenida Brasil retoma esse registro, mas de maneira específica. A via de passagem a que o título se refere alude à nação, mas está situada no Rio de Janeiro e liga a cidade ao subúrbio. A novela satiriza o estranhamento da elite da zona sul com o atual processo de incorporação social.
Na contramão do ufanismo consumista do Brasil que chegou ao futuro, a novela se aventura no comentário politicamente incorreto sobre os temores que a ascensão social engendra. Como a classe média urbana que há décadas impera no espaço da novela está vendo a vingança da empregadinha?
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[Esther Hamburger é PhD em antropologia na Universidade de Chicago e professora de história e crítica de televisão, cinema na ECA-USP; é diretora do Cinusp Paulo Emílio; autora de O Brasil antenado: a sociedade da novela (Zahar)]