Ainda não se sabe precisamente quem matou Max (Marcello Novaes), por que Adauto (Juliano Cazarré) perdeu o pênalti ou qual será o surpreendente destino de Carminha (Adriana Esteves) prometido pelo autor João Emanuel Carneiro. A única certeza absoluta sobre o último capítulo de Avenida Brasil é que nesta noite, a partir das 21h10m, dezenas de milhões de pessoas estarão assistindo aos 70 minutos do desfecho da trama, que teve média geral de 38 pontos de audiência. A novela chegou a ser o programa mais visto da TV em 2012, quando, em 8 de outubro, registrou 49 pontos com 74% de share (participação no total de televisores ligados), com a expulsão de Carminha da mansão de Tufão (Murilo Benício). Mas não foram apenas os altos números que garantiram à produção um lugar no Olimpo dos maiores folhetins da História. Para especialistas em teledramaturgia, o que transformou Avenida Brasil num fenômeno foi sua repercussão.
O enredo criado pelo autor de A favorita (2008) tornou-se assunto obrigatório nos últimos meses. Fosse na internet – com a criação de memes inspirados nos personagens e nos comentários em tempo real nas redes sociais durante a exibição dos capítulos – ou nas conversas diárias. E atraiu a atenção de gente que não costuma ver telenovelas. Os motivos para esta verdadeira mobilização nacional vão desde uma renovação de linguagem feita por autor e diretores – capitaneados por Amora Mautner e José Luiz Villamarim – até a percepção da mudança na configuração da sociedade brasileira, com a ascensão de uma nova classe média.
“A telenovela, no Brasil, mais do que entretenimento, é a narrativa da nação. O João Emanuel captou o espírito que vivemos hoje. E isso vai além da classe C. O país passa por um momento de orgulho e otimismo. O fato de ele focar no subúrbio tem tudo a ver com isso. O Tufão é um cara rico que podia ter saído dali, mas preferiu preservar a identidade, o orgulho. Os brasileiros vivem uma fase orgulhosa”, defende Maria Immacolata Lopes, coordenadora do Centro de Estudos de Telenovela da USP.
Entre o cinema e o seriado
A professora e diretora da Escola de Comunicação da UFRJ Ivana Bentes tem opinião semelhante à de Maria Immacolata: “É uma novela sobre mobilidade social, e que dramatiza essa mobilidade entre grupos sociais diferentes, com gosto estético distinto, com comportamento social próprio, de forma inteligente, fazendo uma crônica do presente.”
Diferentemente da maioria das produções do gênero, a novela ambientou sua trama central no subúrbio. Apesar de um tanto idealizado, o Divino impressionou com personagens e diálogos que, de fato, poderiam ser encontrados nos bairros cortados pela Avenida Brasil. Essa construção apurada dos personagens é um dos diferenciais apontados por Letícia Hees, professora de Comunicação em Televisão da PUC-Rio: “O núcleo do subúrbio sempre existiu, mas em outras novelas ele era mais caricato. Em Avenida Brasil há uma humanização decorrente da consistência dos personagens.”
Doutor em Teledramaturgia Brasileira e Latino-Americana pela USP, Mauro Alencar concorda com a afirmação e lista outras características que contribuíram para o fenômeno. “O folhetim acertou em cheio ao focar no subúrbio carioca com uma visão positiva do cotidiano. A isso tudo podemos somar uma trama perfeitamente bem urdida, que flertou com outros gêneros como o cinema e o seriado.”
Ganchos fortes
A inovação de linguagem aproxima Avenida Brasil de outros gêneros, como as séries de TV, com ganchos fortes envolvendo a trama central a cada capítulo. A influência do cinema também apareceu, especialmente na direção, com citações claras a filmes como Kill Bill, de Quentin Tarantino, e Pequena Miss Sunshine, de Jonathan Dayton e Valerie Farris. Embora o enredo tenha sido construído sobre as bases do folhetim, é a sua forma que traz a novidade. “A repetição é um recurso utilizado na teledramaturgia porque a novela compete com outros apelos do cotidiano. O João Emanuel não usa isso. Se o espectador perde um capítulo, sente que ficou para trás. A trama avança, e avança muito rapidamente”, completa Letícia.
Ao perseguir esse ritmo mais dinâmico, a história alcançou um público acostumado à linguagem fragmentada da internet. Com mestrado e doutorado em Teledramaturgia pela USP, Maria Ataíde Malcher observou o envolvimento dos jovens com a trama. “Estou com 49 anos e minha geração tem como hábito assistir a novelas, diferente dos jovens de hoje. Esta geração está mais voltada para outras mídias. Com Avenida Brasil, eles acompanharam e repercutiram a novela na web. A linguagem dos capítulos é diferente, as cenas são rápidas e recortadas. Mas eles não ligam porque a leitura que fazem não é linear.”
Com foco na trama central e um elenco enxuto, a novela evitou os rodeios comuns ao gênero. Todos os tipos que circularam pelo Divino, de uma forma ou de outra, estavam ligados, o que proporcionou boas cenas a quase todos os atores. Até mesmo os personagens com menos destaque tiveram chance de se desenvolver. Foi o caso das empregadas Zezé e Janaína, vividas pelas atrizes Cacau Protásio e Cláudia Missura. “A novela teve um equilíbrio de elenco pouco visto em outras tramas”, opina Letícia.
“Limite tênue”
Em cena, foram poucos os personagens maniqueístas. Os tipos criados pelo novelista se destacaram pela ambivalência. Até mesmo a vilã Carminha, grande destaque da trama e capaz de mentir e tentar matar seu amante, mostra sua humanidade com o amor inquestionável pelo filho Jorginho (Cauã Reymond). “A novela não tem uma mocinha sofredora, mas uma heroína dúbia, vingativa, que foge do padrão”, avalia Nilson Xavier, autor do Almanaque da Telenovela Brasileira.
Há quem veja em Avenida Brasil ainda a influência de outras expressões artísticas, como a literatura, que apareceu na história em referências a obras como O primo Basílio, de Eça de Queiroz, por exemplo. Muniz Sodré, sociólogo e professor da Escola de Comunicação da UFRJ, destaca a literariedade dos diálogos: “Muitos autores fazem sucesso apenas reciclando materiais literários, mas essa história transcendeu o folhetim. Está num limite tênue com a literatura. Um exemplo é a estrutura de romance policial usada pelo autor, que manifestamente usou a escritora Agatha Christie como referência. Há o início de uma forma literária que nunca havia visto em novela alguma.”
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[Thaís Britto e Zean Bravo, de O Globo]