Segunda-feira, 4 de fevereiro. Todos os sites e telejornais do dia noticiam o escândalo de corrupção em jogos de futebol apurados pela Europol, que envolve vários países do mundo, principalmente da Europa. No entanto, na ESPN, emissora famosa por sua politização, o programa Linha de Passe de segunda (21h) não faz sequer menção ao caso na chamada de abertura do programa. O apresentador concentra seu foco nos resultados dos estaduais (competições usualmente desprezadas pelos jornalistas da casa) e na precariedade do novo Mineirão, inaugurado com muitos problemas no fim de semana.
Com seu time completo de comentaristas pela primeira vez em 2013, o principal programa de debates da ESPN só não foge completamente ao tema porque Márcio Guedes rompe o silêncio e menciona o caso, ainda que timidamente, mas nenhum dos outros jornalistas (Trajano, Kfouri, Calazans e Paulo Vinícius Coelho) repercute o assunto. Quando mais tarde volta a mencioná-lo, Trajano o faz apenas para se livrar dele, com Juca Kfouri apressadamente alegando tratar-se de “coisa do Leste Europeu” – um jogo (dentre as 700 partidas denunciadas pela Europol, muitas delas possivelmente transmitidas pela emissora) supostamente manipulado da Liga dos Campeões.
Postura tipicamente preconceituosa, de quem acha os ingleses impolutos ou que corrupção é coisa de países subdesenvolvidos. Não bastam os casos recentes de corrupção no futebol na Itália, coração da Europa. Não bastam Valcke, Blatter e Platini. (E a Europol investiga Alemanha, Áustria, Eslovênia, Finlândia, Reino Unido, Hungria, Holanda e Turquia, entre outros.)
Blackout virou apagão
Aliás, a perspectiva eurocêntrica dos comentaristas esportivos tem tudo a ver com seus posicionamentos ao longo da programação. Não se fala do isqueiro jogado em campo ou do laser na cara dos jogadores na partida Real Madrid e Barcelona porque não querem admitir que os torcedores europeus não são mais “civilizados” que os brasileiros e latino-americanos. São só mais bem-vigiados. Não se comenta o nível da arbitragem europeia, tão ruim quanto o nosso. E se insiste em louvar o futebol dos times “europeus”, quando são na verdade selecionados internacionais, muitos dos quais devem seus méritos ao talento dos jogadores latino-americanos (times com elenco do próprio país de lá perdem, com certeza, para o Atlético Goianiense).
Os casos de racismo da Europa não são atacados com o entusiasmo com que se condenam as mazelas brasileiras, como a mania de o jogador nacional cavar faltas. Sintomaticamente, Trajano elegeu Seedorf “a melhor contratação do futebol brasileiro, por tudo que fala e faz”. Tudo que é bom veio do estrangeiro, sussurra-lhe o velho complexo de vira-latas.
Francamente: será preciso uma terceira guerra mundial para essa gente se convencer de que as sociedades europeias não são exemplo pra ninguém? Mas talvez ela não venha de lá, talvez venha de outra sociedade que os jornalistas classe média neoliberais também adoram, num outro plano, copiar, quando nos noticiários demonstram seu desprezo à língua materna ao substituir todas as referências a bicicleta por bike e a bichinho de estimação porpet. Só que quando temblackout no Super Bowl rapidamente vira apagão porque apagão, no ideário neoliberal, é coisa de subdesenvolvido, como corrupção, Brasil, América Latina e Leste Europeu.
Jornalismo classe média neoliberal
O esforço dos eurocêntricos em poupar os que eles acreditam superiores e criminalizar o que julgam inferior chega às raias do contorcionismo, como fez um comentarista, também da ESPN, ao discordar no Lance da reação dos internautas brasileiros à pane de energia no SuperBowl. Segundo ele, as gozações nas redes sociais eram um novo tipo de complexo de vira-latas, pois visavam a “aproximar o Brasil do Primeiro Mundo”. Manifesta ele próprio um tipo agudo deste complexo, e todos os sintomas que acometem o jornalismo classe média neoliberal: deslumbramento com tudo que cerca países ditos primeiromundistas, verniz de cultura, loas ao sucesso econômico-social, identidade com a ideologia da empresa.
(Em tempo: o SporTV cobriu amplamente o escândalo denunciado pela Europol, com mais entusiasmo até que as velhas denúncias de corrupção doméstica, que costuma acompanhar com incompreensível descaso.)
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[Silvia Chiabai é jornalista]