Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A televisão no mundo dos semideuses

Verdade seja dita, para a televisão o esporte é um produto, assim como uma novela. Por isso, para que essa mercadoria atraia consumidores, faz-se necessária a presença de esportistas de destaque. Contudo, só isso não basta, é preciso que os principais atletas sejam moralmente impecáveis para que possam tornar-se ídolos e atrair mais público.

Por essa razão, as reportagens e transmissões, especialmente na TV aberta, procuram sempre causar a impressão de que o sucesso no esporte está diretamente associado a uma conduta correta na vida pessoal. Assim, logo que um desportista alcança bons resultados e começa a atrair atenção e audiência, ele passa a ser retratado como uma grande pessoa, um exemplo a ser seguido. Da crença do público no bom caráter do ídolo é que surge a empatia que leva as pessoas a assistirem televisão. Mais audiência é igual a mais dinheiro em caixa. Além da TV, as companhias também buscam se associar às estrelas de cada modalidade e, para aumentar as vendas, reforçam ainda mais o bom-mocismo do atleta.

No entanto, é sabido que desempenho profissional não tem relação alguma com a conduta pessoal e vice-versa. Por exemplo, uma pessoa pode ser um excelente escritor, vender milhões de livros e, ao mesmo tempo, ser um ser humano desprezível, ou um arquiteto pode projetar prédios incríveis ao mesmo tempo em que bate na esposa.

A imagem de infalibilidade

O que acontece em outros campos profissionais acontece exatamente no campo esportivo. Porém, neste caso, isso acarreta perdas para outros segmentos. A televisão e as empresas não vendem o ser humana atleta, e sim, sua imagem e falhas morais depreciam o produto. Por isso, quando esses esportistas cometem crimes ou falhas, os mesmos atores que os exaltavam como grandes exemplos são obrigados a apedrejá-los e condená-los à fogueira impiedosamente. É o caso, por exemplo, de Lance Armstrong. Ele agora é retratado como um grande vilão em meio a esportistas honestos. Todos nós sabemos que o doping é muito mais comum do que é normalmente divulgado, contudo a televisão faz um esforço para passar a imagem de que o meio esportivo é formado por exemplos a serem seguidos que, de vez em quando, é invadido por malandros desonestos.

É preciso ressaltar que alguns canais a cabo, como a ESPN Brasil, exercem um jornalismo mais crítico e conseguem, na maior parte das vezes, separar o sucesso no esporte da conduta na vida pessoal. Contudo, a TV aberta, por buscar um público mais abrangente, fica muitas vezes prisioneira dessa cobertura um tanto hipócrita que tenta desumanizar atletas e colar neles a imagem de infalibilidade.

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[Pedro Valadares é jornalista e revisor, Brasília, DF]