Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

“Não se pode criticar a telenovela por preencher uma lacuna”

Entretenimento barato. Falseamento da realidade. Exageros. Essas são algumas das palavras usadas pelo senso comum para criticar as telenovelas. Sucessos como Vale Tudo (1988) que, com a simples pergunta “Quem matou Odete Roitman?” (vilã interpretada por Beatriz Segall), parou o Brasil em frente à televisão. Por quê? Para aqueles que acreditam em alienação e falta do que fazer, há gente estudando esses fenômenos. E gente séria.

O Núcleo de Pesquisa de Telenovela (NPTN), “criado em 1992, é o primeiro centro de referência no Brasil destinado exclusivamente à pesquisa e documentação sobre telenovela, desenvolvendo estudos sobre suas características, influências, teledramaturgia e linguagens” (clique aqui para saber mais).

Para tentar entender um pouco mais – e eliminar alguns preconceitos – sobre esse tema tão presente no universo brasileiro, conversei com a professora Anamaria Fadul, formada em Filosofia e com mestrado e doutorado na mesma área (além de pós-doutorado pela Università degli studi di Roma Tre) e livre-docente da Universidade de São Paulo sobre o tema.

A senhora tem uma formação sólida em Filosofia. Por que escolher estudar telenovelas? Como sua formação impactou na escolha deste tema?

Anamaria Fadul – Minha formação foi em Filosofia, mas antes mesmo de terminar o mestrado eu já estava dando aulas na ECA. De certa forma, essa mudança foi decisiva, pois ensinar Filosofia em uma Escola de Comunicação não é a mesma coisa que no Departamento de Filosofia da USP. Dessa forma, em meu doutorado a temática central foi o questionamento da teoria da Indústria Cultural, tal como ela foi elaborada pela Escola de Frankfurt.

O brasileiro é o povo que mais vê novelas? Por quê?

A.F. – Não saberia dizer se do ponto de vista quantitativo o povo brasileiro é o que mais assiste telenovela. Entretanto, não se pode desconhecer que ela tem um profundo impacto na cultura brasileira, fato esse constatado por várias pesquisas empíricas. Poderíamos dizer que, ao lado do futebol e do carnaval, ela contribui para a formação da identidade brasileira, como tem sido apontado por vários pesquisadores. Esse impacto se revela das mais diferentes formas, algumas mais profundas (comportamento) e outras mais superficiais (moda, decoração etc.).

“Muitas campanhas sociais têm impacto na sociedade”

O Brasil dito “acadêmico” traz um forte preconceito com as telenovelas, classificadas como “entretenimento barato”. Em recente artigo na revista CartaCapital, o jornalista Mino Carta diz que as telenovelas estão “empenhadas em mostrar uma sociedade inexistente, integrada por seres sem sombra”. Até que ponto isso é verdade? Qual a percepção da senhora sobre o assunto?

A.F. – Ainda existe preconceito na Academia, mas ele é muito mais forte na área de Comunicação que nas outras áreas das Ciências Humanas, uma vez que nessas áreas o mais importante é a pesquisa empírica, e não a denúncia da manipulação das consciências. Esse fato tem profunda repercussão na mídia, especialmente a impressa, pois se existe uma crítica de cinema, de teatro, o mesmo não se pode dizer da televisão e especialmente da telenovela. Os jornalistas que se dedicam a essa área parecem se envergonhar do assunto, que é tratado de forma superficial e preconceituosa. Por outro lado, essa teoria internacionalmente já não tem a centralidade que tem no Brasil, uma vez que a preocupação atual é com os fenômenos contemporâneos trazidos pelas profundas mudanças tecnológicas. Além disso, também não se aceita mais essa ruptura total entre entretenimento e conhecimento. As pesquisas mostram que as mudanças de comportamento são muito mais eficazes se apresentadas na forma de ficção, ou seja, como entretenimento e não de forma didática e instrutiva. Penso que é essa a grande contribuição da telenovela brasileira.

Qual(is) impacto(s) a senhora considera mais significativos e perceptíveis que as telenovelas trazem na sociedade brasileira?

A.F. – Os impactos mais significativos, segundo apontam as pesquisas, referem-se à mudança de comportamento das mulheres, como se pode observar nos índices de natalidade, que aproximam nosso país daqueles mais desenvolvidos. Entretanto, muitas campanhas sociais apresentadas na ficção têm tido profundo impacto na sociedade, como foi o caso das crianças desaparecidas, dos transplantes de medula, da síndrome de Down etc. Acho que a lista é bastante longa e se poderia até mesmo voltar à década de 70 do século passado quando a telenovela Escalada(1975), de Lauro César Muniz, introduziu o problema do divórcio e logo depois essa Lei foi aprovada pelo Congresso brasileiro.

“O público distingue muito bem a ficção da realidade”

Recentemente, a novela Salve Jorgevem mostrando uma quadrilha de tráfico de mulheres para exploração sexual, e o Fantástico, da TV Globo, levou ao ar uma matéria no último domingo sobre bandidos que foram descobertos nas mesmas circunstâncias que na novela. O desbaratamento da quadrilha só se deu por conta da denúncia de uma telespectadora da telenovela. O que a senhora pensa sobre o assunto?

A.F. – Esse fato tem sido recorrente em todas as campanhas sociais que as telenovelas brasileiras veiculam. Por exemplo, com a exibição da telenovela Explode Coração(1995), que tratava de crianças desaparecidas, várias crianças foram localizadas depois de aparecerem no final dessa obra de ficção. É importante que a telenovela possa contribuir para a solução de problemas não resolvidos pelas autoridades competentes. Nesse sentido, não se poderia criticar a telenovela por preencher uma lacuna em nossa sociedade. O caso atual da telenovela Salve Jorgerepresenta, portanto, uma continuidade nas estratégias do merchandising social que tem representado um importante papel auxiliar na mudança de vários aspectos do comportamento da vida social brasileira.

Hoje, as mídias trabalham mais integradas e é frequente ver as novelas virando notícia. Não há perigo na falta de fronteira entre o que é fictício e o que é realidade?

A.F. – A partir do momento em que a telenovela assume esse protagonismo na cultura brasileira, a mídia simplesmente acompanhou essa tendência. Não há nenhum perigo de confusão de ficção e realidade, pois o público distingue muito bem a ficção da realidade. O que acontece é que se pode participar de forma intensa dessa ficção sem em nenhum momento perder os laços com a realidade.

“A existência de autoria na ficção seriada”

A senhora vê avanços nos estudos sobre teledramaturgia hoje no Brasil? E lá fora? Pesquisadores internacionais se interessam por esse fenômeno?

A.F. – A telenovela tem despertado o interesse de pesquisadores em várias Faculdades no país e também no exterior, como se pode ver pelas diferentes publicações. Dessa forma, pode-se dizer que existem muitos avanços nas pesquisas, que passam a tratar de temas cada vez mais variados.

E a teledramaturgia? Em que pontos as telenovelas – do ponto de vista temático – evoluíram?

A.F. – As telenovelas acompanham de muito perto os temas e os problemas enfrentados pela sociedade brasileira, revelando assim uma característica muito especial de nossa teledramaturgia. Os principais autores de telenovela são pessoas profundamente envolvidas com as temáticas sociais da atualidade brasileira. Falar de telenovela no Brasil significa, antes de mais nada, falar de uma característica muito forte de nossa produção, que é a existência de autoria na ficção seriada, o que nem sempre acontece em muitas produções estrangeiras.

Qual o fato mais curioso que a senhora descobriu por meio do estudo sobre as telenovelas?

A.F. – Foi o depoimento dado por um dono de uma indústria de móveis de São Bernardo do Campo a um amigo meu nos anos 90 de século passado: ele disse que quando começava uma novela havia uma preocupação em começar a produzir os móveis mostrados na ficção, pois os clientes logo iriam pedir.

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[Diego Moura é estudante, São Paulo, SP]