Com taxa de crescimento anual de 26%, o serviço de TV por assinatura alcançou, em janeiro, o patamar recorde de 16,5 milhões de brasileiros, segundo a Anatel. O consumo da nova classe média coincide com a recente legislação que determina cotas mínimas de conteúdo nacional na televisão paga. Para o mercado de roteiristas, é como se um novo horizonte se abrisse, para além das habituais janelas da televisão aberta, publicidade ou cinema. Com a imperativa e vasta demanda – que inclui ainda as plataformas multimídia, digital e online –, muitos temem que a escassez de mão de obra atravanque o setor. É nesse contexto que governo, programadoras e operadoras estão promovendo investimentos, concursos de roteiro, palestras e laboratórios para revelar projetos e talentos promissores.
A TV paga, setor cujo negócio é essencialmente baseado na retransmissão de canais e programas estrangeiros, agora se vê, pela primeira vez, na posição de desenvolver, em larga escala, produções locais capazes de atender às regras protecionistas e ao novo perfil de telespectador. “Se eu fosse um jovem autor brasileiro, estaria extremamente empolgado com esse cenário”, diz Barry Schkolnick, roteirista de séries americanas como Law & Order e The Good Wife.
Schkolnick está no Brasil para participar do 1º Programa Globosat de Desenvolvimento de Roteiristas, que trouxe, em janeiro, o badalado professor americano Robert McKee e esta semana promove a vinda de Marta Kauffman (criadora de Friends), Anthony Zuiker (de CSI) e dos executivos Dan Halsted (que representa The Sopranos e Mad Men) e Nancy Josephson, da agência de talentos William Morris Endeavor, uma das mulheres mais influentes do showbiz americano.
“O mercado é precário”
Diretor geral da Globosat, Alberto Pessegueiro afirma que a iniciativa faz parte do empenho em ampliar a presença da ficção na grade de programação, visto que a nova audiência tem pouco interesse em noticiários. “E roteiro, que é a base de tudo, é uma commodity escassa”, acrescenta. Secretário municipal de Cultura do Rio, Sérgio Sá Leitão é ainda mais taxativo, pois enxerga um déficit de profissionais que prejudica o setor. “Sob a luz do novo mercado que se apresenta, há lacuna”, diz Leopoldo Nunes, secretário do Audiovisual.
De um lado, nomes de peso da área, como Bráulio Mantovani, Marçal Aquino, Marco Bernstein ou Paulo Halm, estão frequentemente atrelados a contratos exclusivos com canais abertos. De outro, houve, no Brasil, um processo gradual de valorização do roteiro, antes ofuscado pela onipotência da figura do diretor, que ainda deixa resquícios. “Tem muita gente boa pipocando, mas deve haver ainda 25 diretores para cada roteirista”, diz Fernando Meirelles (diretor de Cidade de Deus), para quem o quadro já melhorou.
Cineastas como Jorge Duran e Eduardo Escorel, por outro lado, acreditam que há profissionais suficientes e capazes. Newton Cannito, presidente da Associação de Roteiristas, diz que as condições de trabalho no Brasil nem sempre são ideais. Segundo ele, aqui o profissional é comumente sub-remunerado, não possui poder de decisão ou a certeza de que terá seus créditos respeitados e sofre ingerências que podem prejudicar o texto final. “O mercado é precário e, sem investimento sólido e contínuo, estaremos fadados a sempre buscar novos talentos”, afirma.
O risco da fase inicial
No modelo americano de TV, o roteirista principal, chamado de showrunner, recebe alto salário, escolhe elenco, diretor, burila diálogos com atores, determina figurino e cenário e assume funções de produção, contou Marta Kauffman, em sua palestra, no Rio, para as empresas produtoras.
O aporte federal de verbas, a cargo da Ancine, historicamente costuma privilegiar a produção, ou áreas como comercialização e distribuição. “Isso é a cara do Brasil, onde se atola na transposição do rio São Francisco sem os devidos estudos. Claro que vai dando errado pelo caminho”, diz Meirelles.
Já as produtoras não possuem capital de giro para apostar em novos talentos, afirma Paula Barreto, para quem falta dinheiro, mas não bons autores. Muitos defendem, como Meirelles e Carlos Eduardo Rodrigues, diretor da Globo Filmes, que o Estado deve assumir o risco da fase inicial de produção. “Nos Estados Unidos, a cada oito projetos investidos, apenas um é filmado”, diz Marco Altberg, presidente da Associação Brasileira de Produtores Independentes de TV (ABPITV).
“Nosso desafio é se reinventar”
Atendendo ao setor, uma linha voltada para desenvolvimento de iniciativas estará disponível no próximo Fundo Setorial do Audiovisual, como também nos investimentos da RioFilme, anunciados nesta semana. Presidente da Ancine, Manoel Rangel diz, no entanto, que não basta a criação do mecanismo. “Será necessário também uma ampla mobilização. Deve-se pensar na reestruturação dos departamentos criativos das empresas”, afirma. “A formação de roteiristas é um desafio de médio a longo prazo para toda a indústria, e é preciso atuar já”, completa. Sérgio Sá Leitão amplia o escopo: “Trata-se de um gargalo. Faltam roteiristas, eletricistas, diretores de arte, operadores de câmera etc.”
Há outras iniciativas. A Net lançará um concurso nacional de roteiro, aproveitando sua capilaridade no país. “Quem sabe não descobrimos um talento em Belém, distante dessa habitual concentração no eixo Rio-São Paulo?”, diz Fernando Magalhães, diretor da programadora. Em maio, o Festival Varilux de Cinema contará mais uma vez com uma oficina de roteiros.
Com esse cenário que sopra a favor, os resultados logo aparecerão, afirma Dan Halsted, citando o bem-sucedido exemplo do Canadá, que tinha panorama similar há cerca de uma década. “Nos anos 1950, levou tempo para os Estados Unidos aprenderem, mas é possível”, diz Barry Schkolnick. Marta Kauffman ressalta que o Brasil terá de enfrentar, simultaneamente, as mudanças globais no modelo de negócio, com as exibições em meios como iTunes, YouTube, tablets e a chegada das séries online de alta qualidade, compactas e instantâneas, como “House of Cards”, da Netflix, com Kevin Spacey.
“É preciso paciência, pois há uma revolução em curso de vastas proporções”, diz Marta. Perante o recorrente fascínio brasileiro pelo modelo americano, o cineasta Eduardo Escorel ressalva que o Brasil precisa produzir conteúdo que possa distingui-lo do resto do mundo. “Com um mercado em ascensão, e a diversificação de linguagens da ‘infoera’, nosso desafio é se reinventar”, diz Leopoldo Nunes.
******
João Bernardo Caldeira, do Valor Econômico