Não é de surpreender que hábitos da dita “família popular” sejam cada vez mais atraentes à atenção dos meios de comunicação; costumes então ordinários – privados – inseridos no espaço-realidade público-publicitário-televisivo adquirem potências e valências extraordinárias, sutil e passionalmente políticas. Adotando estéticas-roupagens descontraídas, bem-humoradas, brilhantes, simpáticas e, por vezes, simplórias, a tela, em sua análise, parece sintetizar e refletir o núcleo parental; mas, dediquemo-nos a esta provocação, tais imagens são mesmo tão familiares? Tais imagens mostram-se capazes de traduzir a instituição família em sua pressuposta familiaridade e domesticidade?
Famílias presenciam, por exemplo, eventuais trocas ou supressões – subversões – conjugais motivadas e vinculadas pela mídia sob a chancela de experiência lúdica, porém real, uma vez que é parte de um reality show; dentre elas, uma das mais recentes e populares, “Mundo sem mulheres”, especial do Fantástico apresentado e narrado pelo igualmente global ator Alexandre Borges. O quadro foi filmado durante uma semana e está sendo apresentado em forma de série. Mulheres de onze famílias de um bairro carioca concordaram em passar dias em um spa (na companhia do ator-apresentador Borges) enquanto aos homens restou a tarefa de cuidar da casa e dos filhos. Famílias comuns? O foco da “documentação” está nas dificuldades e crises encontradas pelos homens durante a feitura de afazeres corriqueiros. No domingo 28/04 foram dedicados por volta de 12 minutos em horário nobre; o episódio vinculado elegeu como tema os filhos pequenos e a falta que sentiram de suas mães.
Mundo igualitário
A temporária extirpação feminina da convivência familiar faria, então, com que maridos e crianças percebessem o valor (da presença e do serviço) de suas mães: por uma nova divisão do trabalho doméstico! “Muito justo“ (?), diz Renata Ceribelli. Numa espécie de reparação teatral, as esposas – tirando um “tempo só pra elas” – sentem falta de suas famílias em meio a aulas de dança e mergulhos coletivos na piscina enquanto seus maridos “encaram a dura realidade” lavando louça, escolhendo feijões, empurrando carro e, em especial, lidando com choros e manhas dos filhos de pouca idade. Sentenças extraídas do episódio em questão dão o tom da abordagem: “Os homens se juntam para fazer coisas que as mulheres não apoiariam.”; “Ele bem que tentou botar ordem na bagunça…” O quadro é apresentado em temporadas e, vinculado também no canal a cabo GNT, ainda gera conteúdo independente para a internet: “Veja como fazer coque de bailarina“, “Encarar a louça pode ser mais fácil“, “Maridos tentam se virar na cozinha“.
A delegação quase automática e falsamente natural de funções, papéis e afazeres dedicados especificamente a homens e a mulheres serve de base para a concepção do quadro, que insiste, justamente, em suas inversões (lembrando, inversões efêmeras, datadas, carnavalescas). A noção “clássica” – eminentemente ortodoxa: heterossexual, monogâmica e biparental – de família e convívio familiar também constitui uns dos sustentáculos da série. Na ausência da amável gestora até então possivelmente desvalorizada, o caos espreita o lar. Pode-se identificar, aí, uma retórica moralista disfarçada, implícita e imbricada na lógica de um discurso de suposta valorização feminina. O “equilíbrio” a ser restaurado com a volta das mulheres parece tornar demonstrável que cada membro precisa desempenhar sua função específica, predeterminada, e ficar contente/satisfeito com eventuais reconhecimentos, auxílios e/ou colaborações por parte dos outros. Sustenta-se sutilmente uma lógica violentamente perpetuadora. Na chamada de estreia do quadro, em diálogo com o âncora Tadeu Schimidt, Ceribelli, em figurino, postura e atuação belíssimas, pergunta ao espectador: “Será que vocês, eles, vão finalmente aprender a ser mais compreensivos, mais pacientes, conosco e a valorizar o sacrifício que nós, mulheres, fazemos pela família?“ Sem dúvida, todo casal complementar-se-á em suas tarefas e importâncias para o sustento de uma residência, mas o quadro não sugere, a priori, uma complementação orgânica e arbitrária, mas, pelo contrário, rígida, padronizada, predeterminada fisiológica e sexualmente.
O mérito de pais e mães solteiros – famílias monoparentais – que se esforçam na educação daqueles pelos quais são responsáveis aparentemente se esvai, é ignorado e, de certa forma, debochado. As opções estéticas comparam o atrapalhado caos paterno (a casa em desordem) com o equilíbrio saudável e natural materno (representado, neste caso, pelo spa). Enfoque e aparência – recortes da realidade – denotam um posicionamento político conservador. Atentemo-nos ao “Mundo sem mulheres” e a outros shows jornalísticos para que, refletindo sobre tais imagens, possamos enfraquecer ideias que considerem mulheres sem um mundo (ainda que utopicamente) igualitário.
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Guilherme Henrique de Oliveira Cestari é designer gráfico e mestrando em Comunicação