Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Ela veio sem nunca ter vindo

Nem tudo dá certo logo de cara. A novela Roque Santeiro, por exemplo, só vingou na segunda tentativa. A primeira aconteceu em 1975 e foi abortada: a produção já tinha começado quando a Censura Federal implicou e forçou o cancelamento da estréia. Dez anos mais tarde, em 1985, ela finalmente entrou no horário nobre e, aí sim, foi um dos maiores sucessos da história da Rede Globo, com a grife personalíssima de seu autor, Dias Gomes. Seu realismo satírico-fantástico à brasileira, que caçoava dos vendedores de falsas imagens e falsas promessas, foi a marca de um tempo.


A novela começava quando Roque Santeiro, o personagem-título, já não vivia em Asa Branca, a cidadezinha fictícia que servia de metáfora do Brasil. Logo nos primeiros capítulos, o telespectador ficava sabendo que Roque desaparecera 17 anos antes. Segundo a crença local, morrera ao enfrentar valentemente um malfeitor que ameaçava o povo. Todos falavam dele, idolatravam-no, mas o herói, em pessoa, ninguém podia mais ver. Defunto, tinha virado mito.


Agora, no ano em que a TV digital entrou em funcionamento no Brasil – ou melhor, entrou em funcionamento, por enquanto, apenas na cidade de São Paulo, ao menos oficialmente –, o espírito de Roque Santeiro volta a rondar a platéia. A TV digital está aí, mas quase não se consegue sintonizá-la. Ninguém contesta sua existência, embora quase ninguém a veja. É como se ela fosse um mito de ponta-cabeça, não por ter deixado a vida para entrar na história, mas por não ter nascido, se é que nasceu, do modo triunfal que era anunciado nas profecias.


Qual a estética


Roque Santeiro, sejamos justos, era mais que um mito qualquer: era o mito fundador de Asa Branca. Os crédulos o viam como santo milagreiro. Havia até o Zé das Medalhas, que vendia moedinhas com o seu retrato. Entre tantos, a mais inesquecível habitante da cidade era Porcina, falastrona, vaidosa, histriônica, que se proclamava viúva de Roque, ainda que jamais tivesse se deitado com ele. Agora, amante do ‘coroné’ da localidade, Sinhozinho Malta, refestelava-se no luxo. Definida pelo autor como ‘a que era sem nunca ter sido’, Porcina encarnava a ética política de Asa Branca.


Eram tempos gloriosos da telenovela. A TV colorida alcançava seu ponto mais alto na função de integrar a nacionalidade e, com Dias Gomes, encontrou sua mais exuberante expressão estética. Os cenários e figurinos se baseavam na profusão de cores, muitas cores, todas e mais algumas. Aparentemente excessivos, os tons berrantes dos vestidos da falsa viúva eram exatos na sintaxe da crítica política. Em preto e branco, aquela narrativa não teria colado. O ridículo dos tipos inventados pelo novelista, impostores e usurpadores, não poderia ser retratado em tons de cinza, nem mesmo em tons pastel. Um arco-íris só não bastaria. O deslumbramento do telespectador diante das colorações da tela espelhava o deslumbramento da viúva com as próprias extravagâncias cromáticas – extravagâncias práticas, políticas, verbais e amorosas. Roque Santeiro se beneficiava ao máximo das possibilidades tecnológicas da TV dos anos 80. Dias Gomes e a TV em cores nasceram um para o outro.


E agora, na era digital? Qual será a estética da TV brasileira?


Questão de tempo


Por enquanto, a resposta não existe. O que se pode dizer é que ela ainda se debate nos embustes anacrônicos de Asa Branca, onde os figurões são festejados por serem o que jamais foram e as novidades raramente passam de fogos de artifício que se dissolvem no céu.


Segundo acreditavam os mais otimistas, a TV digital traria tanta interatividade quanto a internet. Até agora, nada feito. Traria a multiprogramação, quer dizer, cada canal poderia transmitir ao mesmo tempo quatro programas simultaneamente. Negativo: algumas emissoras públicas têm planos nessa área, mas a operação ainda vai demorar. Prometeram que ela seria sintonizada em automóveis e no metrô, em minitelevisores móveis. Bem, os transeuntes ainda aguardam. Quanto aos que querem captar o sinal em casa, precisam desembolsar algo em torno de R$ 1 mil na compra do tal set-top box, o conversor que viria a preços camaradas.


Uma única promessa foi cumprida, ainda que para poucos: a alta definição. As imagens de estúdio de alguns programas já são transmitidas no novo padrão. Mas eis que – suprema ironia involuntária – as novas câmeras acabam mostrando o que as câmeras anteriores primavam por esconder: desmascaram o que a encenação televisiva sempre dependeu de ocultar. A maquiagem do âncora, mal fixada sobre imperfeições rugosas, explode na tela. A gente tem a sensação de que poderá ver cada grão do pó-de-arroz. Os retoques na parede, antes imperceptíveis, convertem-se em cicatrizes intoleráveis. O que até então parecia um fino trabalho de bronze não passa de madeira pintada com spray dourado. Com a alta definição, os artifícios que criavam a ilusão de realidade estão nus, constrangedoramente nus.


Claro, todos sabem, esse desconforto é só uma questão de tempo. Logo mais as engrenagens da ilusão mudarão de lugar, as técnicas de maquiagem e cenografia vão se adaptar e a alta definição triunfará. Aí, a TV digital deixará de ser mito e se dará a ver. Não cumprirá todas as promessas, mas será um eletrodoméstico mais acessível. Se serve de consolo, é bom lembrar que o próprio Roque Santeiro também decidiu se dar a ver: voltou para Asa Branca e anunciou que não tinha morrido coisa nenhuma. Foi um forrobodó. Uma novela memorável. Mereceu ter sobrevivido à censura. Mereceu emplacar na segunda tentativa, dez anos depois da primeira. Que os fãs da TV digital não tenham que esperar tanto.

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Jornalista e professor-visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP, autor de Videologias (Boitempo, com Maria Rita Kehl), presidente da Radiobrás entre 2003 e 2007