Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Em crise o modelo “descolado” do público

O artigo de Nelson Hoineff, "Telejornalismo e a crise do velho modelo" [ver remissão abaixo] coloca em foco um ponto muito importante na discussão do telejornalismo atual. De fato, não me parece haver dúvidas da existência de uma espécie de "crise" axiológica rondando as redações dos meios de comunicação – e não apenas no telejornalismo. Nesse sentido, li o artigo com muito interesse, visto que compartilhamos dessa mesma opinião inicial. Todavia, no que diz respeito à interpretação desse problema, que chamei de axiológico, nossas opiniões divergem.


Utilizo o termo "axiológico" não no sentido de que os jornalistas se sentem desnorteados no mundo atual – um mundo onde as transformações não apenas são constantes, mas onde a própria constância tem sido inconstante – mas sim que o mundo atual deixou de lado as premissas dos jornalistas.


É certo que muitos jornalistas também se sentem desnorteados, mas não é esse aspecto que eu gostaria de comentar. O principal fenômeno, a meu ver, não reside nos jornalistas, mas na enorme transformação de um público que, durante muitas décadas, aceitou pacificamente a chamada imparcialidade jornalística, vendo-a como fonte de informação confiável. Até esse ponto, julgo que ainda estamos de acordo.


O fim das ideologias


O problema é que a argumentação ao autor, feita do ponto de vista do jornalista, e não do público, parece entender que é o princípio de uma mídia isenta que está sendo questionado, e não a isenção da mídia.


Parece-me que já não é de hoje que a comunicação jornalística, isto é, a comunicação dos homens de comunicação, estava se tornando um monólogo. Um monólogo que encontrava ressonância num mundo cada vez menos ideológico, no qual as diversidades se esvaziavam no nivelamento monocromático das massas.


A imprensa, como uma mulher vaidosa, construiu seu templo no Olimpo da informação, no ápice desse conhecimento massificado. Do alto de sua montanha de informações, transmitia não apenas a notícia, mas também sua interpretação. Afinal, uma notícia mastigada pelo âncora independente era sempre mais facilmente absorvida.


Parecia o coroamento de uma longa espera que chegava ao auge nos anos 90, a década em que alguns chegaram a defender um pretenso "fim da história", como o fez Fukuyama, diante do fim das ideologias. Desse auge a-ideológico, num mundo onde os valores religiosos tinham sido relegados ao domínio do subjetivo, deveria nascer forte a mídia independente.


O caso Dan Rather


Todavia, nem a imprensa tornou-se verdadeiramente isenta de ideologia e nem a religião aceitou sua nova posição na história. E aqui me parece que está o problema que o artigo não analisa.


Não é apenas a mídia tida como "isenta" que está em crise (veja o caso do Libération, na França, um jornal que nunca poderia ser chamado de imparcial), mas toda a mídia que não entendeu uma espécie de revanche ideológica da história.


Os jornalistas ainda vivem nas premissas dos anos 90, enquanto o público respira valores que poderiam ser classificados como mais atuais… Ou seria melhor dizer mais antigos? Nesse sentido, os telespectadores da Fox não mudaram de emissora porque cansaram da "isenção" da CNN, por exemplo. Eles cansaram foi da CNN, que se proclamava isenta enquanto tinha uma clara opção ideológica. Uma opção ideológica que eles mesmos não percebiam nos anos 1990.


Vamos analisar com mais atenção o caso de um dos âncoras, Dan Rather, citado em seu artigo. Segundo sua tese, ele estaria tendo problemas diante do fato de que um público cada vez maior não buscava mais a isenção em telejornais. Ocorre que Dan Rather foi desacreditado exatamente porque não havia sido "isento" ao desacreditar o serviço militar do presidente George Bush na Guarda Nacional, no programa do dia 8 de setembro, feito ainda durante a campanha eleitoral. Denunciado por blogs americanos, que provaram a falsidade da acusação de Rather contra Bush, a credibilidade dele ficou profundamente abalada, como consta em matéria do New York Times reproduzida no dia 22 de setembro pelo Estado de S. Paulo. Era um sinal claro não apenas da parcialidade dos "isentos", mas de algo ainda mais profundo: a imprensa perdera o monopólio da informação com o advento da internet.


Parcialmente "descolada"


Da mesma maneira, diversos meios de comunicação acostumados a dar a interpretação que julgavam isenta encontram hoje um público cada vez maior a suspeitar dessa imparcialidade e a defender princípios tidos como ultrapassados. E não é por acaso que esses princípios são considerados ultrapassados exatamente pelos que se dizem isentos (como se, nesse juízo acerca dos princípios, não houvesse uma clara posição não-isenta)…


Nesse contexto, a Fox encontrou um público cansado de uma pretensa e questionável isenção dos meios de comunicação, um público ideológico, tendente à defesa de valores conservadores e com a capacidade de divulgar esses valores através de canais estranhos à mídia convencional.


Poderíamos dizer que a imprensa tida como "isenta" está parcialmente "descolada" do público e esse "descolamento" tende a crescer na mesma medida em que ela demorar a entender essa mudança axiológica e as conseqüências da perda de seu monopólio. E, certamente, não será acusando seus "descolados" de serem parciais que ela restabelecerá a confiança perdida.

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Cientista político pela Universidade de Brasília e bacharel em Direito (http://www.angelfire.com/id/Viotti)