Qualquer um que use o controle remoto para ‘zapear’ entre os canais de TV aberta pode facilmente identificar o excesso de propaganda. Apesar de o Código Brasileiro de Telecomunicações limitar ao máximo de 25% do tempo de programação a quantidade de publicidade que pode ser veiculada por emissoras de televisão, não são raros os canais que se dedicam exclusivamente ao comércio eletrônico.
A equipe do Observatório do Direito à Comunicação acompanhou 24 horas da programação de quatro canais de televisão aberta de São Paulo: Rede Brasileira de Informação – RBI (canal 14 UHF), MixTV(canal 16), PlayTV (canal 21) e ShopTour (canal 46). A pesquisa confirma que todos estes canais violam a legislação, ultrapassando o tempo máximo de publicidade permitido.
Em alguns casos, há leilões de jóias e tapetes. Em outros, são horas ininterruptas de comerciais com apresentadores animados ‘entrevistando’ gerentes de lojas de todos os tipos, que ainda oferecem descontos especiais para os ‘espectadores’. E há, ainda, os programas de até 30 minutos que apresentam um único produto – um grill, um aparelho de ginástica, uma câmera digital. Ao final, claro, o número do serviço de tele-vendas.
Traduzindo em números, o monitoramento indicou que 62,5% da programação da RBI é dedicada ao comércio eletrônico. São 15 horas diárias de comerciais dos mais variados produtos e serviços e 9 horas de programas religiosos, um programa de ‘notícias’ de uma hora e meia, com entrevistas, e videoclipes musicais ‘emprestados’ da MixTV.
A MixTV, por sua vez, divide sua programação entre atrações caracterizadas como de ‘varejo’ e ‘jovem’. A faixa batizada ‘jovem’ ocupa menos de 10% do conteúdo da emissora e consiste, basicamente, em programas de videoclipes.
Já a PlayTV veicula cerca de dez horas diárias de programas comerciais, ultrapassando, portanto, em quatro horas o limite estabelecido para publicidade. Os demais programas – basicamente videoclipes musicais, desenhos animados e programas religiosos – são ainda intercalados por comerciais. Ou seja, a violação da legislação é ainda maior.
O mais explícito e conhecido caso, porém, é do canal ShopTour, com programação composta exclusivamente por publicidade. O sinal da emissora atinge cerca de 50 municípios de 10 estados brasileiros. A empresa veicula desde 1987 programas de vendas em diversas emissoras e, em seu canal próprio, oferece para o espectador 24h de comerciais.
Ação na Justiça
RBI, ShopTour e MixTV são alvo de uma Ação Civil Pública (ACP) que exige adequação destes canais, que operam na televisão aberta de São Paulo, às exigências previstas na lei. A Ação foi apresentada à Justiça Federal pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social como parte da campanha ‘Concessões de Rádio e TV: Quem manda é você’. A campanha propõe a ampliação da fiscalização e a punição imediata dos concessionários que não cumpram os requisitos mínimos estabelecidos em lei.
Dentro deste princípio, a ACP questiona a omissão do Poder Executivo em fiscalizar as emissoras paulistas e pede a adequação dos canais ao limite máximo estabelecido pelo Código Brasileiro de Telecomunicações para a publicidade comercial. ‘Queremos que elas se adaptem ao que manda a Lei, mas, caso não façam isso, devem ter a concessão cassada, já que não estão cumprindo os requisitos para a exploração do serviço’, afirma Bráulio Santos Araújo, advogado que representa as entidades.
Os resultados do levantamento feito pelo Observatório não surpreendem, já que as próprias emissoras em suas páginas de Internet explicitam suas infrações e a deturpação das funções que deveriam cumprir como prestadoras de um serviço público. ‘Nem com muito esforço é possível considerar que informar preços de tapetes e anéis seja atender às finalidades do artigo 221 da Constituição, muito menos que isso seja prestar um serviço de interesse público’, afirma Araújo. O artigo citado pelo advogado determina que as emissoras são obrigadas a priorizar conteúdos educativos, culturais e informativos em sua programação.
Inversão de valores
MixTV, RBI e a PlayTV (esta última rede ligada ao Grupo Bandeirantes), veiculam, em meio à programação comercial, programas direcionados ao público jovem. São videoclipes musicais, games, esportes e até desenhos animados intercalados à venda de imóveis, carros, produtos de beleza, roupas e serviços diversos.
Segundo Ana Bock, presidente do Conselho Federal de Psicologia, a programação voltada para a venda fortalece valores que promovem relações sociais guiadas pela idéia de consumo. ‘Estamos ajudando a constituir sujeitos que tudo compram, tudo consomem, tudo descartam’, afirma.
A psicóloga Fátima Nassif, do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo e da Rede Paulista pela Democratização da Comunicação e da Cultura, alerta para a influência da mídia na formação da subjetividade de crianças e adolescentes. ‘A propaganda influencia o comportamento infantil e, em certa medida, juvenil’, destaca.
Fátima aponta que a deturpação de valores incentivada pelo culto ao consumo pode gerar transtornos complicados nas relações familiares e de amizade destes indivíduos. Ela relaciona, como exemplo, o crescimento nos casos de anorexia e bulimia em jovens à ditadura da beleza veiculada nos meios de comunicação.
‘Consideramos esses mercados eletrônicos um abuso total e um desvirtuamento da função das concessões’, diz Fátima, que também integra a Campanha pela Ética na TV. Ela destaca o caráter público do serviço prestado pelas emissoras que, de acordo com a Constituição Federal, devem priorizar a promoção da educação, da arte e da cultura.
Omissão
Com uma legislação defasada em relação ao conteúdo, a limitação em relação à publicidade é um dos poucos critérios que podem ser, de imediato, usados no monitoramento das concessões de rádio e televisão. De acordo com o Código Brasileiro de Telecomunicações, cabe ao Pode Executivo, no caso, o Ministério das Comunicações, fazer a fiscalização.
A assessoria do Ministério das Comunicações confirma que ‘todas as ações punitivas sobre publicidade estão na lei’, no entanto, quando questionada sobre a omissão do órgão em fiscalizar o descumprimento desta lei, silencia. Procurada repetidas vezes para dar um posicionamento em relação à pesquisa, a assessoria de imprensa do Ministério das Comunicações não atendeu às solicitações da reportagem.
A pesquisa realizada com as quatro emissoras será anexada à Ação Civil Pública protocolada em 5 de outubro. Apesar de não constar no documento apresentado, o canal PlayTV apresentou violações similares aos demais à legislação e ainda pode ser inserido na Ação.
O processo corre com o número 2007.61.00.028088-0. Clique aqui para conhecer a íntegra do documento.
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Do Observatório do Direito à Comunicação