A disparada do crescimento das vendas de TV digital nos EUA, anunciada no final de abril durante a NAB (a maior feira do mundo de equipamentos eletrônicos, em Las Vegas), pegou de surpresa até mesmo os analistas do mercado. As vendas de televisores cresceram 124% nos dois primeiros meses do ano em relação ao mesmo período de 2003. É um crescimento mais rápido do que o da venda das TVs coloridas nos anos 1970.
Os consumidores americanos gastaram mais de 20 bilhões de dólares nos novos equipamentos e já há um parque montado de 10 milhões de receptores – o suficiente para fazer decolar, de uma vez por todas, a indústria de conteúdo para TV digital. Isso se deu no momento em que se disseminava a idéia de que a TV digital havia ‘micado’ nos EUA – e, em conseqüência, em todo o mundo –, o que gerava argumentos de sobra para justificar o atraso no desenvolvimento de padrões de TV digital em várias partes do mundo, particularmente no Brasil.
Talvez por mera coincidência, na quinta-feira (22/4/) O Estado de S.Paulo registrou que o projeto do governo de desenvolver um padrão de TV digital brasileiro em lugar de adotar um dos três padrões internacionais existentes foi definido como ‘palhaçada’ pelo presidente da Semp Toshiba, Afonso Antônio Hennel.
A proposta de desenvolvimento de um modelo brasileiro alternativo aos já existentes havia sido apresentada na gestão de Miro Teixeira à frente do ministério das Comunicações. Uma das suas conseqüências foi a criação de um ‘comitê gestor’ para substituir o que havia sido feito durante quatro anos pela SET, o braço de engenharia da Abert. O fato evidentemente retardou ainda mais o processo, embora isso tenha sido uma decisão política capaz de ser justificada – já que o governo aplicava aí uma nova diretriz, a de tratar a questão da televisão digital sob um prisma mais social do que técnico.
É interessante observar que as palavras de Hennel, que considera o projeto do ex-ministro ‘uma xaropada’, não sustentam, ao contrário do que se poderia pensar, a necessidade de pressa para a definição do sistema – pelo contrário: ‘Não vejo razão para pressa. Não é importante. Não vai fazer a vida das pessoas melhorar’. O presidente da Semp-Toshiba acha que não vale a pena bater na tecla da migração para o digital enquanto não houver condições para a existência no Brasil de um parque instalado de 1 milhão de receptores. No momento, estima-se que essa capacidade seja de cerca de 10 mil (contra 40 milhões de receptores analógicos existentes no país).
Quadro desanimador
O novo presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), Pedro Jaime Ziller, tem dito que a definição sobre o padrão brasileiro pode sair no início de 2005. O fenômeno anunciado pela indústria americana deve fazer o pêndulo pender para Ziller.
Fenômenos como o da súbita mudança no comportamento dos consumidores em relação à compra de aparelhos digitais não param de acontecer. O fracasso dos laser-discs no final dos anos 1980 é um grande exemplo. A tecnologia simplesmente não pegou. Pouco depois, os DVDs eram lançados sob a previsível desconfiança da indústria. Em pouco tempo tomaram o mercado. Nos próximos três anos já terão enterrado definitivamente as fitas de vídeo, que eram a grande novidade há menos de 20 anos.
A decisão dos consumidores americanos de assimilar a televisão digital sinaliza para a urgência não apenas da definição dos padrões, mas sobretudo da construção do conteúdo para a tecnologia, que vai fazer com a TV analógica o mesmo que os DVDs fizeram com o VHS – com a diferença que, no caso da TV digital, o que existe não é a mudança de uma base para a gravação do conteúdo, mas da própria natureza do conteúdo.
Tornou-se particularmente urgente o desenvolvimento de conteúdo audiovisual diversificado para aplicação específica na nova mídia. Mas o quadro que a produção de conteúdo audiovisual brasileiro apresenta neste momento não é particularmente animador. Nunca a produção de conteúdo para TV esteve tão concentrada. E a má notícia é que isso não decorre de sinecuras dos produtores hegemônicos, mas da absoluta incompetência dos demais.
Dois caminhos
O caso das telenovelas é lapidar. Há duas semanas, fervilham na internet trocas de acusações sobre o fracasso da produção independente Metamorphoses, da Rede Record, que incluem baixarias capazes de gerar elas mesmas uma nova telenovela. Lançado com grande campanha como uma superprodução da produtora Casablanca, de São Paulo, a novela já patina em 1 ponto de audiência e provocou a ira das afiliadas da Record, descontentes com a mudança de horário do Jornal da Record, que fez o noticiário dirigido por Boris Casoy cair para 2 pontos de audiência.
Na produtora, todo mundo briga com todo mundo em e-mails distribuídos para várias listas recheados de pesadas acusações e ofensas pessoais mais pesadas ainda. Ao mesmo tempo, a Globo comemorava o sucesso da novela das 8 (a briga de Maria Clara com Laura chegou a garantir à Globo 63 pontos de audiência ou 81% de share – isto é, dos aparelhos ligados) e também os recordes conseguidos pelas novelas das 6 e das 7.
A Folha de S.Paulo (domingo, 2/5) mostrava, em matéria de capa da Ilustrada, a ascensão dessas novelas sobre ‘o mundo cão das outras TVs’ e assegurava que ‘a direção da TV Globo está andando nas nuvens’. Há poucas semanas, a Globo havia anunciado a conquista, em 2003, de um share publicitário de 78%, o que deixava todas as outras redes combinadas com 22% do bolo publicitário. Poucos dias depois, em entrevista à revista Contigo, Silvio Santos assegurava que as restrições à Tele-Sena podem levar à falência o SBT, segunda maior rede de TV do país.
A ineficiência das demais redes de televisão em criar produtos competitivos, aliada à dificuldade de parceria com produtores independentes e do estabelecimento de mecanismos de produção eficientes para que essa parceria possa decolar, fazem com que a construção de conteúdo para TV se afunile justamente no momento em que seria mais imperioso que ele se expandisse.
O início da implantação das plataformas digitais tem que coincidir com a diversificação e expansão da produção de conteúdo em bases sólidas. Se isso não acontecer, haverá dois caminhos: o aumento exponencial da concentração existente agora, ou a dependência muito maior ao conteúdo estrangeiro. Ou conseguimos nos preparar para o melhor, ou vamos passar os próximos 50 anos discutindo o que nos é menos pior.