Como as emissoras desejavam e este Observatório antecipou em setembro do ano passado [ver ‘Por um lugar na fila dos beneficiários digitais‘], o governo anuncia na quinta-feira (29/6) a adoção do padrão japonês para a TV digital terrestre no país. É um padrão que, embora seja o menos testado de todos, permite extraordinária mobilidade, portabilidade e robustez. Com ele, sinais de televisão poderão ser transmitidos diretamente para receptores móveis (aparelhos celulares, por exemplo) sem a necessidade de linhas telefônicas.
A opção pelo padrão japonês, contudo, não encerra a questão. Ela não define o modelo de negócios que será adotado pela TV digital terrestre no país. Não determina, por exemplo, se o espectro será utilizado exclusivamente para transmissões em HDTV com pouca capacidade interativa, ou se os 6 MHz de que dispõem as emissoras poderá ser utilizado para multiprogramação – vários sinais na mesma faixa de freqüência, que poderão ser operados pela mesma emissora ou por outros programadores.
Não fecha a questão tampouco em relação à existência ou não de operadores de sistemas, que montariam uma estrutura única a ser compartilhada por todas as emissoras. Uma parte da questão digital está definida. Outras estão ainda em início de discussão.
TV defasada
Desde 9 de junho, por exemplo, muitos brasileiros estão vendo a Copa como nunca viram antes: através de receptores de alta-definição instalados em shoppings por todo o país. A Globo montou essa rede, em parceria com fabricantes de televisores. Faz parte da estratégia da emissora para sustentar que o modelo de negócios a ser implantado com a chegada da TV digital deve priorizar as transmissões em alta-definição (HDTV).
Tanto a opção pelo HDTV pleno quanto pela multiprogramação são defensáveis. Os EUA optaram pelo HDTV, a Europa optou pela multiprogramação. Não se pode rejeitar o HDTV porque isso representaria abraçar o atraso. Toda a Copa, como se sabe, está sendo gerada em HDTV – e convertida em cada país para o seu sistema. Quase toda a programação americana é hoje gerada em HDTV.
Por outro, dizer que a televisão está bem como está, é consagrar a hipocrisia.
A Europa, por exemplo, não abandonou o HDTV. Fez isso para que coubessem mais canais na televisão aberta, restringindo o HDTV à televisão fechada. Mas na maioria dos países europeus, a TV a cabo abrange mais de 92% do território, contra menos de 8% no Brasil. Por conta disso, a televisão aberta no Brasil passou a ter uma importância que o resto do mundo já não lhe atribui. Para 78% da população brasileira, a televisão é sua fonte primária de entretenimento.
Mesmo quando tem TV a cabo, o brasileiro prefere as emissoras de sinal aberto. Na verdade, 70% dos assinantes de TV paga no Brasil pagam para ver com melhor qualidade as emissoras que já recebem pelo ar. O resto do mundo age da mesma forma. Assiste prioritariamente à televisão aberta, generalista, embora a receba por uma operadora paga.
Se o Brasil seguir o que fez a Europa, vai limitar o HDTV ao pequeno segmento capaz de pagar por um operador de TV por assinatura. Sua TV aberta ficará defasada. Em compensação, o espectador terá acesso a mais canais. Que canais serão esses? Essa é uma das questões a ser resolvidas. Podem ser redes públicas já existentes. Podem ser o repique do que já existe, tanto na televisão aberta quanto na TV por assinatura.
Olhos fechados
Se a opção for pelo HDTV pleno, o país entrará imediatamente na era da TV aberta com qualidade de imagem seis vezes superior à que existe atualmente (na verdade, as transmissões analógicas atuais conviverão com as digitais por cerca de 10 anos, até que sejam desligadas). Mas, não havendo aumento no número de emissoras, vamos ter que admitir que pouca coisa mudará em relação ao conteúdo hoje existente.
Essa é a má notícia. Tudo resvala para a qualidade do conteúdo e isto se tornou um perverso dogma no país. Na primeira reunião do Comitê Consultivo do Sistema Brasileiro de TV Digital da qual participou, o ministro Hélio Costa, das Comunicações, foi taxativo: se é para ter o que temos hoje, não precisamos de alta-definição. Pouco tempo depois sua posição mudou. Em mais de uma ocasião, referiu-se à televisão brasileira como ‘a melhor do mundo’.
Até os semicondutores sabem que isso é uma piada de gosto duvidoso. Se por um lado não interessa a ninguém a multiplicação de opções de má televisão, ainda por cima com impacto sobre a divisão do bolo publicitário, por outro interessa menos ainda uma televisão medíocre com imagem melhor.
A afirmação de que a televisão brasileira é a melhor do mundo não apenas carece de sustentação como dissemina um dogma nocivo ao aprimoramento do próprio veículo. A diversificação das fontes de produção pode não ser suficiente para melhorar a qualidade da televisão, mas é condição necessária. A literatura sobre televisão está cheia de autores que, como Sartori, identificam na diversificação uma medida de qualidade maior do que a simples encenação de Shakespeare, por exemplo.
Fechar os olhos a essa evidência, no momento em que se examina a forma como o conteúdo será distribuído pelos próximos 50 anos, não ajuda em nada a televisão e muito menos a sociedade. O debate digital não se esgota com a opção pelo padrão japonês. Pode-se dizer que é ali que ele se inicia. Já sabemos que tipo de transmissores e de televisores serão fabricados, resta saber agora o que passará por eles.
Momento propício
Reduzir a questão da TV Digital à melhoria da imagem e do áudio do Super Pop ou do Domingão do Faustão é menosprezar demais a televisão. Questões como mobilidade, portabilidade e robustez vão desenhar a forma e o modelo de negócios da televisão brasileira por muitos anos.
São decisões difíceis. Na base de todas está, como proclamam as emissoras, a sobrevivência da televisão. Mas a sobrevida do veículo vai ser proporcional à qualidade do que ela tem para oferecer. E o que ela tem a oferecer é programação.
Os sinais analógicos deverão ser desligados no Brasil por volta de 2020. Em alguns lugares do mundo isso já aconteceu. Nos EUA, o desligamento ocorrerá dentro de pouco mais de dois anos. Durante o período de construção da TV digital no país podemos aceitar tudo, menos que ela reproduza os erros acumulados nos últimos 50 anos. Pode-se retardar a tecnologia por algum tempo. Mas não podemos deixar de discutir agora o que poderemos fazer para tornar nossa televisão mais atualizada, mais competitiva, mais diversificada. Mais relevante, enfim, para o negócio televisão e para a sociedade brasileira.
Isso passa pela construção e organização de uma nova programação. Isso passa por uma forma mais generosa e inteligente de se olhar para o potencial da televisão – em todos os sentidos, inclusive os culturais e comerciais.
A indústria já sabe que tipo de equipamento vai produzir. Dentro de seis meses, os brasileiros estarão defronte à extraordinária imagem em alta-definição que a televisão será capaz de transmitir. Poderá ver imagens de TV nos seus aparelhos celulares e também quando estiver se deslocando em ônibus e trens. Isso é ótimo.
Temos que correr para não transformar essa evolução no tenebroso símbolo de nosso desprezo pelo veículo. Temos que aproveitar o momento da implantação da TV digital para entender que a televisão hoje oferecida à sociedade brasileira não faz jus à grandeza do veículo. Temos que ficar defronte, e sobretudo, à extraordinária televisão que o brasileiro também pode ser capaz de produzir.