Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Especialistas ou doutrinadores?

O jornalista Ricardo Kotscho publicou em seu blog texto criticando a invasão dos telejornais brasileiros por ‘especialistas’. Depois de ler as reflexões de Kotscho, resolvi prestar atenção ao fenômeno e deparei com um grave incidente no Jornal da Cultura.


Em 23/03/2011, durante o JC, uma professora de Direito Internacional da USP disse que o conflito entre palestinos e israelenses decorre ‘fundamentalmente da intolerância dos islâmicos’. Esclareceu a ‘especialista’ que Israel estava quieto por causa do conflito na Líbia e foi injustamente provocado por islâmicos que, segundo ela, querem impor sua religião aos judeus. A simplificação do comentário é evidente e maldosa. Com uma única frase, a especialista retirou do debate 50 anos de história do conflito entre israelenses e palestinos. O mapa abaixo ilustra muito bem a verdadeira origem do conflito.



Escandalosamente doutrinados


Do ponto de vista histórico, não há controvérsia. Desde que foi criado, o Estado de Israel tem movido uma constante e inclemente guerra de conquista territorial contra os palestinos. Portanto, o padrão histórico do conflito é, ou pode ser, bem diferente daquele referido pela ‘especialista’ no JC. Uma das interpretações mais plausíveis é que os israelenses avançam sobre territórios palestinos e estes se defendem como podem sem qualquer apoio significativo do ocidente.


A hipocrisia da comunidade internacional nesta questão é ultrajante. O ocidente precisou de alguns dias para montar uma ampla operação militar para defender civis na Líbia contra Kadafi, mas nos últimos 50 anos nunca fez qualquer operação semelhante para defender civis palestinos atacados por Israel. Aliás, impossível esquecer que há bem pouco tempo um primeiro-ministro de Israel autorizou o uso de bombas de fósforo proibidas contra civis em Gaza, coisa que nem Kadafi teve coragem de fazer nas áreas ocupadas pelos rebeldes civis que a ONU supostamente quer proteger.


O comentário feito pela professora de Direito Internacional no JC é claramente tendencioso. Ela usou o argumento religioso para desqualificar as pretensões palestinas e legitimar, de maneira obliqua, a guerra de conquista territorial permanente que tem sido movida pelo Estado de Israel na Cisjordânia e Gaza. Não é difícil perceber que a professora da USP pressupõe serem corretas e indiscutíveis as teorias de Oriana Fallaci e Samuel Huntington. Ninguém pode condená-la por aderir às teses destes teóricos pró-israelenses, mas o Jornal da Cultura deveria abrir espaço para outros especialistas que adotem uma perspectiva diferente da de Oriana Fallaci e Samuel Huntington. Inevitável a conclusão de que, em 23/03/2011, faltou ao JC a indispensável equidade jornalística.


Uma cobertura jornalística não equitativa do conflito israelense-palestino é lamentável. Os destinatários da mensagem formulada e difundida unicamente pela ‘especialista’ JC pró-israelense não foram informados. Foram escandalosamente doutrinados. E para mim, como para muitos outros, nada pode ser mais repulsivo do que a doutrinação produzida por um veículo de comunicação de massa. Em 23/03/2011 o JC adotou um perfil perigosamente semelhante às ‘tradições jornalísticas’ nazista, fascista e comunista dos anos 1930. Lamentável!

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Advogado, Osasco, SP