Há indícios a cada dia mais claros de que pode estar em curso em Curitiba, no Paraná, mais um daqueles casos em que uma mídia despreparada e negligente torna-se cúmplice de uma polícia açodada e venal para pré-condenar e execrar pessoas por crimes que não cometeram. Refiro-me aos episódios que culminaram com a prisão da médica-chefe da UTI – Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Evangélico, a doutora Virgínia Helena Soares de Souza, com base em denúncias difusas de que ela apressava a morte de pacientes do SUS – Sistema Único de Saúde para abrir vagas para pacientes atendidos pelos convênios particulares.
A médica deveria ser posta imediatamente em liberdade. Sua prisão, na prática, significa apenas um ato de violência contra ela e contra o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, que garante aos cidadãos brasileiros o princípio da presunção da inocência, estabelecendo que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
A polícia civil do Paraná passou um ano investigando o caso a partir de denúncias de ex-funcionários do Evangélico. Foi, portanto, mais de um ano de gravação de todos os telefonemas da médica Virgínia Helena e de sua equipe. Nada mais natural, portanto, que a polícia se encontre na obrigação de achar culpados a qualquer preço. Foi muito trabalho para resultar em nada. Para acelerar o passo na busca desse objetivo, a polícia troca palavras de telefonemas da médica em gravações propositadamente reveladas à imprensa. Num dos telefonemas a um membro da equipe, a médica disse: “Com a cabeça bem tranquila para raciocinar.” No texto revelado à mídia, a frase foi transformada em “com a cabeça bem tranquila para assassinar”. Seria hilário se não fosse trágico.
Tudo dentro da legislação
O conjunto das gravações telefônicas liberadas para a imprensa ajuda a depreciar a imagem da acusada. A linguagem entre “intensivistas” (médicos especializados no atendimento a pacientes internados em UTIs) mostra-se absolutamente informal, embora os conteúdos refiram-se a óbitos, a desligamento de aparelhos, à movimentação sempre dramática de uma unidade intensiva. A mídia explora as gravações pelo seu lado sensacionalista. Não raciocina: a morte está na rotina dos médicos intensivistas. Enlouqueceriam se ficassem consternados a cada óbito que presenciam. A informalidade é defesa, portanto.
No domingo (10/03), o Fantástico põe no ar respostas da médica Virgínia Helena a perguntas que lhe foram encaminhadas. Ela aceitou responder desde que sua imagem na prisão não fosse gravada. O programa perdeu a grande oportunidade de colocar o assunto em seus aspectos científicos. As perguntas ficaram sobre o “barulho” que a polícia tem provocado em torno do caso. A médica, por exemplo, é acusada de haver ministrado a um paciente algumas drogas de efeito letal. Antes de divulgar a resposta da médica, o programa exibe a declaração de um outro médico intensivista dizendo que não é nada comum a prescrição desses medicamentos numa unidade de terapia intensiva. Em seguida, é divulgada a declaração de Virgínia, segundo a qual o uso desses medicamentos é bastante comum nas UTIs. Pareceu uma “Pegadinha do Faustão”. Se não tivesse se juntado aos interesses da polícia pela condenação de Virgínia, o Fantástico teria apurado, com vários outros intensivistas, qual das duas versões é a correta. É falta de critério jornalístico do Fantástico ter ficado apenas com uma segunda versão.
Na verdade, toda a mídia tem passado ao largo das implicações científicas que o caso transporta. Visto pela complexidade do fenômeno da morte, pode-se dizer que é praticamente impossível à polícia conseguir comprovar, através da pequena coleção de depoimentos de pacientes e enfermeiros, que a médica Virgínia Helena praticou eutanásia ou tirou de algum paciente a possibilidade de sobrevivência. As certidões de óbitos exaradas pelo hospital durante esse longo período de investigação certamente vão revelar que ela – e os membros de sua equipe – fizeram tudo certo e dentro da legislação brasileira que regula prazos e critérios para a identificação da morte encefálica, a última fase do paciente terminal e que estabelece a irreversibilidade do que os especialistas chamam de “complexo pessoal”.
Atitude mercenária
O médico e professor de Medicina Legal Genival Veloso de França afirma em seu famoso artigo “Um Conceito Ético de Morte”, de 2000: “É difícil precisar o exato momento da morte porque ela não é um fato instantâneo, e sim uma sequência de fenômenos gradativamente processados nos vários órgãos e sistemas de manutenção da vida. Hoje, com os novos meios semiológicos e instrumentais disponíveis, pode-se determiná-la mais precocemente.”
Os médicos intensivistas, com a experiência da doutora Virgínia Helena, têm por obrigação saber identificar se a morte irreversível ocorreu ou não apesar de o coração continuar em funcionamento. Devem conhecer as já antigas advertências de Genival Veloso quando diz “… pode-se determinar a morte desde que se possa confirmar a ausência de sinais de vida organizada. Esta determinação também não pode estar na morte de um órgão, mesmo sendo ele indispensável, senão na evidência de sinais claros que indiquem a privação da atividade vital como um todo e, se possível, registrados em instrumentos confiáveis”. Como será que a polícia poderá descobrir se esses critérios técnico-científicos foram ou não obedecido nos casos de óbitos registrados na UTI do Evangélico no período de investigações?
É nesse ponto em que se estabelece uma questão ético-científica de alta relevância. Se já foram produzidas lesões cerebrais irreversíveis, de modo que aquele paciente não tem a menor chance de escapar da vida apenas vegetativa, desligar os aparelhos, fazer cessar o sofrimento e as esperanças de familiares é uma decisão humanitária. O contrário dela – manter o paciente ligado ao respiradouro após ficar constatado que ele sofreu morte encefálica – poder ser uma atitude mercenária, que servirá apenas para elevar o valor da fatura que a família terá de pagar ao hospital.
Bom senso
Internada numa clínica do Rio de Janeiro, a cantora Clara Nunes foi mantida ligada aos aparelhos por semanas a fio quando os boletins médicos que informavam sobre seu estado de saúde já identificavam que ela sofrera morte encefálica. Foi o que denunciaram na época (março de 1983) médicos do Hospital das Clínicas de Curitiba, que haviam passado vários anos na Itália estudando o fenômeno da morte e como identificar a ocorrência em pacientes em coma profundo.
Policiais e jornalistas têm de ser chamados ao bom senso em relação a esses episódios do Evangélico que, pelo menos por enquanto, têm a fisionomia daqueles outros, da Escola Base, de São Paulo, que tanto envergonharam as duas categorias.
******
Dirceu Martins Pio é jornalista e consultor em comunicação corporativa