Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Flamarion, profissão repórter; Turquinho, profissão amigo

Talvez o que mais distinguisse o repórter Flamarion Mossri de nós todos, mortais comuns, era a facilidade de encontrar todo dia um belo lead que quase sempre terminava estampado na primeira página do Estadão ou do Jornal do Brasil, ou como noticiarista da TV Globo, as casas onde trabalhou até ser abatido pela doença renal que terminaria arrancando-o de nosso convívio. O poeta Anderson Braga Horta escreveu que ‘basta uma centelha de céu para incendiar os campos de ternura’. Por sua vez, Armando Nogueira, numa crônica que já virou lenda, dizia de Garrincha que, ‘para um drible dele, a superfície de um lenço era um latifúndio’. Pois digo, sem medo de reparo, que meia palavra ou simples gesto de um político, nas mãos de Flamarion, podia se transformar na manchete do dia seguinte. Nada lhe escapava, embora não costumasse tomar notas e guardasse um sagrado horror de gravadores e outros artefatos bélicos de igual periculosidade.

Pois Flamarion Mossri reunia as três aptidões que se exige de um bom repórter nesses tempos rápidos de internet (embora tenha exercido a profissão na era pré-computador): um olho treinado para identificar o lead onde menos se podia imaginar que estivesse; um conhecimento enciclopédico das informações sobre a história política recente, inclusive as relações extraconjugais ou outros dados tão ou mais relevantes para o desenrolar da história do país; e, por último, uma extraordinária capacidade de encontrar sentido e estabelecer relações de causa e efeito entre declarações e fatos aparentemente desconexos. Flamarion nos deixava com inveja pela facilidade com que convertia um espirro numa notícia com início, meio, fim; ainda se dava ao luxo de realizar a análise do fato e, de quebra, prever suas prováveis conseqüências.

Para um foca como eu que ainda cheirava a banco de faculdade, deparar-me na redação do JB (e trabalhando na mesa ao lado!) com aquela síntese de extraordinárias competências era apenas o máximo. E não foram poucas as vezes em que, ele de plantão no Estadão (trabalhava para os dois jornais, pois não via incompatibilidade nisso, dizia que paulista não lê jornal do Rio e carioca não dá bola pra jornal de São Paulo, o que aliás é a mais genuína verdade), e eu de plantão no JB, cansou de me dar furos sensacionais. Pois dava-se ao luxo de guardar informações exclusivas colhidas durante a semana só para nos infernizar a vida nos sábados e domingos.

Felizmente não fui vítima do maior furo de sua vida. Eu ainda brincava pelas ruas de minha Teresina quando, em 1961, Flamarion Mossri furou toda a imprensa brasileira com a notícia da renúncia de Jânio Quadros, fato que iria alterar decisivamente os rumos da história do Brasil, criando as condições para o ingresso do país nos anos de chumbo da ditadura militar de 64, cujos desdobramentos vivemos até hoje. À parte esta vocação inabalável para o jornalismo – ‘é a única coisa que sei fazer na vida’, orgulhava-se –, Flamarion Mossri tinha uma outra vocação que o tornava maior diante de nós: a vocação para criar e cultivar as boas amizades.

Jamais deu atenção à máxima de que jornalista não deve ser amigo de suas fontes, pela simples razão de que era com elas que passava o dia inteiro. Onde iria fazer amigos, não fosse entre deputados, senadores, funcionários da Câmara e do Senado, além dos próprios colegas? Nem assim misturava as duas coisas – amigo é amigo, notícia é notícia. Os políticos sabiam disso e se sujeitavam à publicação de matérias que até podiam lhes desagradar. Sabiam que no peito enorme do ‘Turquinho’ conviviam, de um lado, o amigo fraterno, do outro, o profissional irretocável. E havia uma parede entre essas duas partes. Uma vez, por exemplo, recomendaram-lhe que não noticiasse que havia visto o ex-ministro da Saúde Souto Maior dando um soco em Nelson Carneiro. Noticiou tudo. No dia seguinte, Nelson Carneiro chegou armado ao Congresso, para acertar contas com o desafeto. Flamarion era amigo dos dois. E ninguém se feriu no tiroteio.

Só havia um momento em que toda a isenção era posta de lado: quando o assunto dizia respeito à sua Passa-Quatro, a cidadezinha mineira onde nasceu e para cujo jornal nunca deixou de colaborar. Era capaz de se submeter a qualquer constrangimento para humildemente pedir a aprovação de uma emenda para a construção de uma escola ou de um posto de saúde. Fui testemunha dessa dedicação cujo objetivo era apenas o de ajudar sua gente, sem qualquer contrapartida. Brincando, eu dizia que Passa-Quatro era o único município brasileiro com um representante exclusivo no Congresso… O ‘Turquinho’ ria-se todo, encabulado mas orgulhoso. Passa-Quatro talvez nem saiba, mas um bom pedaço do que tem de benfeitorias deve-se à ação silenciosa e desinteressada de um de seus melhores filhos.

No Comitê de Imprensa que me acolheu nos idos dos anos 70, Flamarion foi um dos mestres mais carinhosos, ao lado de Lustosa da Costa, Clóvis Sena, Rubem de Azevedo Lima, Abdias Silva, Tarcísio Hollanda e de Dário Macedo e Thomaz Coelho (que já nos deixaram), entre tantos outros. Além de funcionários dedicados como Paulo Afonso e Heiderne, entre muitos. Lembro muito bem do cuidado do ‘Turquinho’ em me apresentar pessoalmente às principais lideranças políticas da época como ‘o menino que o JB está nos mandando pra cá’. E a gozação de me fazer ‘tomar a bênção’ ao Edésio, um veterano ‘rapaz alegre’, funcionário do Comitê, espécie de trote a que o Flama submetia todos os repórteres-calouros.

Éramos mais românticos naquela época. Mas tenho certeza de que éramos mais felizes. E ninguém se surpreenda se, a qualquer momento, chegar aí um furo assinado por um tal de Flamarion Mossri, dando conta de que o Todo-Poderoso acaba de renunciar, desiludido com o gênero humano, abrindo profunda crise institucional no Paraíso. Do inesquecível e querido Flama, nosso ‘Turquinho’ irrequieto, eu não duvido de nada.

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Jornalista, pesquisador, professor da UnB, documentarista, autor de A noite das reformas, O salto sem trapézio, Vermelho, um pessoal garantido, Caprichoso: a Terra é azul e Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês. Este artigo é parte do projeto acadêmico Telejornalismo em Close (http://caid.sites.uol.com.br), coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para (paulojosecunha@uol.com.br)