Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Galvez, a gente se vê por aí

Curiosa, se não fosse preocupante, a decisão de a TV Globo adquirir os direitos do romance histórico Galvez, o Imperador do Acre, do escritor Márcio Souza. Essa escolha resultou, como todos sabem, na minissérie Amazônia, atualmente em exibição, que, no entanto, é baseada nas obras Terra caída, de José Potyguara da Frota e Silva, e O seringal, de Miguel Ferrante. Constata-se, então, que tudo o que não interessa à Globo é que o conteúdo de Galvez, Imperador do Acre venha a ser conhecido. Mas não é só isso.

Quem tenha tido a paciência de acompanhar pari passu os capítulos da minissérie percebeu que a ficção de Glória Perez acaba tendo mais destaque do que a história que, no subtítulo da obra, a TV Globo promete contar. O título Amazônia – de Galvez a Chico Mendes não corresponde à verdade histórica, nem de longe. Está mais próximo de ‘de Galvez a Chico Mendes, segundo a piração de Glória Perez’. Abundam absurdos lingüísticos, onde a aristocracia metida a besta usa expressões na segunda pessoa do singular, tais como ‘tu queres o meu amor’ com ‘deixa comigo’, na boca dos filhos abastados dos coronéis. Mas isso não é tudo – tem mais.

Uma gafe histórica

Em uma cena do capítulo do dia 8 de fevereiro, a certa altura, um dos coronéis da borracha, preocupados com o andamento da ‘revolução’ e da tramóia envolvendo o governo federal e a Bolívia, diz mais ou menos o seguinte: ‘A exportação da borracha vai ser muito importante para todos nós, principalmente com a indústria automobilística.’ Santo Deus!!! Como é sabido, basta ler em qualquer livro de história que o presidente Campos Salles e o presidente do Estado Silvério Nery governaram o Brasil e o Amazonas, respectivamente, de 1899 a 1903. Ambos são citados várias vezes nas conversas, inclusive com inserção direta da história contada pela Globo. Ora, apesar de Henry Ford ter se interessado pelo motor a explosão desde o final do século 19, somente em 16 de junho de 1903 foi criada a Ford Motor Company que passou a produzir em série, processo conhecido como taylorismo. Como o insignificante personagem da minissérie veio a conhecer tão importante notícia que iria provocar tamanho aumento nas exportações de látex? Pela internet?

Mas a TV Globo ‘não está nem aí’. Eles perdem a vergonha, mas não a piada. Se colarmos essa gafe aos resultados do conhecimento dos alunos de primeiro e segundo graus SAEB (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica), amplamente divulgados no mesmo dia em que o capítulo foi ao ar, a situação não parece assim tão engraçada, e sim, trágica. E vejam vocês que a TV Globo, através de um de seus programas, pretende alfabetizar o Brasil, com ensino à distância pela TV Futura. Mas tem mais ainda.

Projeto político

Desde os gregos, o protagonista geralmente é o personagem mais destacado da trama. Os demais, muitas vezes pelas circunstâncias, acabam tendo grande importância, porém a fábula contada sempre tem como enfoque o destino do personagem central. A saber: Édipo; Medéia; Antígona; Gimba (Guarnieri); Papa Higuirte (Vianinha) e outros mais modernos. Na minissérie, curiosamente, o coronel Firmino (José de Abreu) tem mais inserções do que o papel-título, o de Galvez (José Wilker). A ficção, ou piração, de Glória Perez é mais importante do que a história de Galvez, que na obra é tratado como se fosse um inveterado mulherengo, sem vergonha alguma, ao passo que o coronel Firmino, apesar de ter um filho fora do casamento, não permite que sua cunhada e mulher dêem um passo em falso, de contrário ambas vão terminar seus dias num convento, enclausuradas. O que interessa à Globo – o que parece – é o show, o que pode servir como elemento de indução ao momento presente, não importando se isso tem ou não a ver com a verdade histórica. Esse mote, aliás, foi uma escolha desde há muito. Em outras minisséries, que esse humilde escriba não teve paciência para ver e apreciar, o mesmo crime contra a educação nacional também se manifestou. O que é mais do que evidente é que isso serve aos interesses da Globo, mas não é necessariamente o que a maioria da população quer e precisa conhecer. O compromisso com a informação, o jornalismo sério, deu lugar ao projeto político imediato, e este é inquestionável, vide as últimas trapalhadas em que a emissora se meteu. Com essa amostragem dá pra prever os problemas que vamos ter, quando chegarmos aos tempos de Chico Mendes. Tremo nas calças, mas com muitos personagens ainda estão vivos para contestar os descalabros, morro de expectativa…

Mas a realidade, essa sim, é dinâmica e apresenta contradições deliciosas. No caso, duas envolvendo o ator José de Abreu.

Realidade e ficção

Pouca gente sabe que o ator José de Abreu é oriundo do movimento estudantil de 68, foi segurança, naquela oportunidade, do nada menos que ex-ministro José Dirceu. A história registra uma foto na primeira página de o Estadão: José de Abreu de joelhos, sendo preso pelos agentes do DOPS. Também naquela época, José de Abreu figurava entre os atores do espetáculo O&A do Tuca, conhecido grupo, pensado e dirigido pelos então estudantes revolucionários da AP (Ação Popular); hoje, em sua maioria, adeptos do PSDB. José de Abreu militava na Dissidência (Dissidência Comunista de São Paulo, corrente paulista da qual participava José Dirceu, presidente da UEE; no Rio, de uma corrente com o nome semelhante, Dissidência Comunista da Guanabara, participava Vladimir Palmeira).

No período de abertura, trabalhamos com José de Abreu na montagem Qualé meu (1980), que pretendia contribuir historicamente para esclarecer os acontecimentos trágicos dos governos militares. Originalmente, seria uma adaptação do livro O que é isso, companheiro?, mas seu autor resolveu cair fora e vender os direitos para o cinema. Deu no que deu. Sem comentários. Escrevemos a quatro mãos nossas memórias e de amigos e companheiros do passado ainda recente. Da montagem também participou Ecila Pedroso, apenas como atriz, hoje novelista da Globo. Bons tempos, aqueles. O artista gráfico Elifas Andreatto imortalizou essa montagem em mais um cartaz, anexado a este texto.

Nos capítulos anteriores, o personagem Firmino, interpretado por José de Abreu, numa conversa com um dos filhos tenta convencê-lo (numa boa) a voltar a estudar em Paris. O filho argumenta que prefere o seringal, onde se dá bem, e que ‘afinal, vou tomar conta mesmo’. Firmino retruca, dizendo que é importante o estudo porque se ele, Firmino, tivesse estudado, teria ido mais longe. O filho, então, contesta novamente: ‘Se a escola é tão importante, pai, por que o senhor não deixa criar uma aqui?’ Ele arremata: ‘Escola para seringueiro é problema à vista. Vai ficar assim mesmo, e ponto final. Você vai para Paris querendo ou não.’

Essa inserção cênica, que a princípio poderia ser considerada semente de insatisfação, uma contribuição ao mundo civilizado, se perde nas inúmeras contradições da minissérie que reforça o conformismo e a aceitação de uma produção mentirosa. Mesmo com exemplos de belas interpretações, a começar pelo próprio José de Abreu, a minissérie despreza a cultura, as artes, a história e a inteligência.

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Dramaturgo, São Paulo, SP