Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Guia prático da televisão secreta

A televisão digital estreou oficialmente no domingo (2/12), na cidade de São
Paulo, de forma tão secreta quanto antecipamos neste espaço (ver ‘Bem-vindo
à televisão secreta
‘). Apenas uns raríssimos paulistanos puderam vê-la em
casa, com os equipamentos postos à venda a toque de caixa, nas últimas semanas.


A grande imprensa, cumprindo seu dever, produziu copioso material, inclusive
cadernos especiais, para informar o distinto público sobre o funcionamento da
nova tecnologia e suas inúmeras possibilidades. Boa parte das matérias foram
guias do tipo ‘Entenda a TV Digital’, no formato pergunta-e-resposta, com
explicações objetivas para perguntas idem.


Assim sendo, ombreando-se com as melhores casas do ramo noticioso e no
intuito de oferecer aos leitores do Observatório da Imprensa a informação
mais qualificada possível, esta coluna também oferece a sua modesta
contribuição, arriscando respostas para questões que não foram formuladas, ou
não foram de todo respondidas. São elas:


** O Brasil está certo em adotar a TV Digital?


Sem sombra de dúvida. A TVD (ou DTV, na sigla inglesa que a tradicional
macaquice pátria já adotou) é uma tecnologia muito superior de transmissão de
sinais de áudio e vídeo, que os países centrais já adotam desde o início da
década, ou mesmo antes. Ela abre uma nova etapa na história da televisão e pode
trazer enormes benefícios em termos de informação, entretenimento, educação e
cidadania. Colocar-se contra a TV digital é burrice e fazê-lo apenas por pirraça
contra o governo Lula, é burrice e meia.


** O Brasil adotou a TV Digital no momento certo?


Em termos. A decisão de planejar a introdução da tecnologia no mercado
brasileiro, um dos maiores do mundo, foi tomada até tardiamente, em novembro de
2003 (veja o Decreto
nº 4901
). Poderíamos ter começado antes. Mas, depois que o processo
começou para valer, as milhares de questões que ele colocou recomendavam
cautela, para que as implicações fossem bem estudadas e os entraves solucionados
antes da estréia.


Não foi o que ocorreu. As emissoras apressaram o governo, temerosas com a
instabilidade em seu mercado, que está ameaçado pelo migração de telespectadores
para a internet, a desenfreada pirataria de DVDs e a concorrência que já se
anuncia da IPTV, a televisão por internet das empresas de telefonia, que é paga,
mas de custo mais baixo. Queriam fortalecer-se, oferecendo um forte atrativo ao
público e recobrindo-se da aura de modernidade e avanço tecnológico que haviam
perdido. O governo embarcou na pressa e, em junho de 2006, definiu as regras
gerais do jogo, nos termos em que as emissoras queriam, recuando enormemente de
suas objetivos iniciais (compare o Decreto
nº 5820
com o anterior).


De lá para cá, tudo foi feito na correria, sem tempo para o desenvolvimento,
por exemplo, do sistema operacional Ginga, o Windows da TVD brasileira – nossa
(boa) contribuição ao sistema japonês que adotamos. Estamos começando sem Ginga,
o que significa uma TVD limitada e gastos futuros para os consumidores que estão
comprando equipamentos agora.


** O Brasil fez o certo ao adotar o padrão japonês de TVD?


O padrão japonês, desenvolvido depois do americano e do europeu, é mais
avançado e adapta-se melhor às condições brasileiras, sejam as sócio-econômicas,
sejam as geográficas. Testes conduzidos por universidades (USP, Mackenzie), com
apoio das emissoras, demonstraram isso.


A questão é que o padrão japonês privilegia a alta definição de imagens e de
sons (HDTV), e a mobilidade/portabilidade, isto é, a recepção em veículos de
qualquer tipo e em dispositivos pessoais como celulares, i-pods etc. A primeira
dessas funcionalidades é bastante elitista, já que exige receptores muito caros.
Tanto assim que, mundo afora, a definição que temos atualmente – a chamada
‘padrão’, ou ‘standard’ (SDTV) – ainda é majoritária na TVD.


Quanto à outra funcionalidade, o padrão japonês interessava mais às emissoras
porque permite que elas transmitam diretamente para os celulares, sem passar
pelas redes de telecomunicações. São elas que fazem o sinal chegar ao aparelho e
não as teles. Com isso, as emissoras mantém o controle exclusivo de seu mercado.
É melhor para o telespectador, claro, que não tem de pagar nada às teles, mas
não foi no orçamento dele que as emissoras pensaram e sim no próprio.


Já o padrão europeu foca mais a multiprogramação, ou a possibilidade de se
ampliar o número de canais, e também a interatividade, que permite ao
telespectador navegar em telas de informação e fazer escolhas, como na internet.
Isto seria melhor para o Brasil, que tem pouca diversidade de conteúdo na
televisão e um enorme contingente de pessoas ainda longe da rede mundial de
computadores (cerca de três quartos da população). Foi por isso que os setores
pró-democratização da mídia posicionaram-se mais a favor do padrão europeu, ou
de um padrão mais adequado às nossas necessidades.


** O padrão de TVD que temos, afinal, é japonês ou
nipo-brasileiro?


O governo adotou o sistema japonês, com inovações brasileiras – basicamente,
o navegador Ginga e a compressão de imagens padrão MPEG-4. O sistema japonês
puro não funciona aqui e não adianta trazer muamba nipônica do Paraguai. Ele
também não incorporou, ainda, os avanços da engenharia brasileira.


Portanto, não há propriamente um padrão ‘nipo-brasileiro’, ao menos por
enquanto. Há um padrão japonês e um brasileiro, que é o japonês adaptado. Os
dois são únicos no mundo e adotados apenas em seus mercados. O que significa que
não dá para importar nem exportar. Por isso, são mais caros que o americano e o
europeu. E seguirão sendo, enquanto não conquistarem novos mercados.


** Onde foi parar a fábrica de semicondutores, que o Japão nos
daria como contrapartida pela escolha de seu padrão?


Perdeu-se no papelório oficial. Não era uma exigência contratual nossa, nem
um compromisso formal deles. Era uma vaga intenção de envidar esforços no
sentido de um dia, quem sabe, considerar a remota hipótese de estudar o assunto
por dois ou três minutos. Já passaram mais de cinco e não rolou fábrica alguma.
Nem vai rolar.


** O que, enfim, a TV digital brasileira oferecerá aos
telespectadores?


Inicialmente, das grandes funcionalidades da TVD – alta definição,
mobilidade/portabilidade, multiprogramação e interatividade – só está disponível
a primeira. E apenas para consumidores que possam comprar conversores (set
top boxes
) dotados de HDTV, com custo superior a 1 mil reais, e que tenham
telas de LCD ou plasma com 1080 linhas de resolução (a mais baratinha custa
quase 8 mil reais). Ou seja: a elite da elite da elite dos telespectadores. A
turma do Rolex.


Para a tigrada, a aquisição do conversor digital mais simples, em definição
SDTV, já melhora bastante a imagem e o som do televisor analógico que a maioria
tem. Mas com os preços desse conversor na faixa de 500 reais, no mínimo,
significa que o consumidor terá de desembolsar quase o valor de dois televisores
atuais de 16 polegadas para melhorar a sua recepção. O bom-bril na antena ainda
vale mais a pena.


** A TV digital elimina, de fato, todos os problemas de imagem?


A TVD acaba com fantasmas, chuviscos, oscilações, todos os problemas da
televisão analógica. Mas também tem lá os seus defeitos. Quem tem NET Digital em
casa já os experimenta. Sabe aquele congelamento de imagens, aquele
quadriculamento, que deixa a tela como se fosse um mosaico de quadradinhos? Pois
é. Defeito digital.


** Quando serão introduzidas as demais funcionalidades da TV
Digital?


A indústria eletrônica está prometendo dispositivos móveis e portáteis para o
primeiro trimestre de 2008. Vamos ver se o preço, e não apenas o aparelho, cabe
no bolso. Quanto ao celular com TV, não se anime muito. As teles comandam a
produção desses equipamentos e, como não lucram nada com a TVD – ao contrário,
porque fulano não telefona enquanto assiste TV, muito menos baixa vídeos,
portanto não gera tráfego –, não haverá nenhuma farra de televisão no celular. É
o que acontece no Japão, onde os dispositivos portáteis para recepção de TV
abundam, mas não os celulares.


Quanto à interatividade, a melhor perspectiva é o final de 2008, quando
estará pronto, supostamente, o navegador Ginga. Mas depende das emissoras se
interessarem por oferecer produtos interativos em sua programação e não há maior
entusiasmo nesse sentido. Elas acham que esse é um novo serviço, muito distinto
do que fazem, e temem investir nele porque não têm modelo de negócio definido.
Preferem fazer apenas o que sabem que dá dinheiro. Puro conservadorismo.


Já a multiprogramação poderia ser implantada rapidamente, se as emissoras
tivessem interesse. Os investimentos não são muito altos. Mas as emissoras
comerciais não querem, porque acham que haverá dispersão dos recursos
publicitários por muitos canais e o cobertor será curto para todo mundo. Como
apenas as emissoras educativas querem, para fazer canais de educação a
distância, a indústria eletrônica não dotou os conversores de sintonia para
multiprogramação. Também fica para o futuro. Indefinido.


** Os preços da TV digital não vão cair com o tempo?


Certamente vão, mas em quanto tempo? Talvez leve anos. A indústria eletrônica
diz que precisa ter ganhos de escala, portanto precisa vender para os primeiros
consumidores por preços mais altos, para que outros comprem mais barato no
futuro. Atualmente, como vimos, só a turma do Rolex pode comprar.


Mas essa turma já não tem TV por assinatura, que já é digital e que oferecerá
HDTV a partir de janeiro? Vai comprar conversores digitais para quê? E se ela
não comprar, como a indústria terá os ganhos de escala?


É aqui que se explica a linha de financiamento de 1 bilhão de reais do BNDES,
anunciada pelo presidente Lula na cerimônia de inauguração da TVD em São Paulo.
O governo vai financiar as redes varejistas, para que elas ponham os preços dos
aparelhos ao alcance da tigrada. Ou seja: o contribuinte é que garantirá o ganho
de escala.


** Os aparelhos que forem comprados agora serão usados por muito
tempo?


Só se o consumidor se contentar apenas com a melhoria do som e da imagem.
Quando as outras funcionalidades da TVD forem introduzidas, os conversores
lançados agora no mercado não servirão para sintonizá-las. Será preciso comprar
novos aparelhos. Que não terão escala em sua produção, portanto serão caros,
portanto necessitarão de uma ajudinha financeira do BNDES, portanto será mais
uma conta para o contribuinte pagar.


** Enfim, o que fazer? Aderir ou não à TV digital?


Não foi o próprio ministro Hélio Costa, das Comunicações, que nos sugeriu
aguardar, porque o governo segue trabalhando para que o conversor digital seja
vendido a 200 reais? Então sejamos obedientes e pacientes, a menos que alguém aí
tenha dinheiro para torrar. Mas, nesse caso, será provavelmente leitor de
Exame ou de Caras, não deste Observatório da Imprensa.

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Jornalista