A década de setenta foi um período decisivo para o desenvolvimento e popularização da televisão brasileira. A rede Globo passou a fazer sua transmissão em rede nacional (a primeira vez foi em 1969 com o Jornal Nacional), e emplacou uma seqüência de novelas que arrebatou a audiência. Os aparelhos se tornaram mais baratos e acessíveis, e o entusiasmo pelo crescimento econômico fazia com que as próprias emissoras apresentassem a audiência como uma grande massa de consumidores em potencial e, portanto, um alvo perfeito para os anunciantes.
Esse foi também um período de grande desenvolvimento do setor de propaganda no Brasil, com a importação de metodologia americana e a fundação das primeiras escolas e associações do ramo. Os anunciantes estavam ávidos para explorar essa nova mídia, mas, para ter alguma garantia de que o investimento valia pena, precisavam de dados confiáveis sobre audiência. Na época, o Ibope ainda utilizava metodologia arcaica e pouco confiável – como o método do flagrante, que consistia em ir até a casa das pessoas e perguntar o que elas estavam assistindo.
Para contornar o problema, alguns anunciantes resolveram fundar a AudiTV, empresa que inovou ao criar o sistema para auferir audiência mais preciso da época, o chamado setmeter. Ligado na televisão, o aparelho perfurava um cartão de quinze em quinze minutos e registrava o canal que estava no ar. Em 1985, porém, a crise econômica fez com que o mercado não mais sustentasse dois institutos concorrentes do mesmo produto, e a Audi TV foi comprada pelo Ibope. O Ibope passou a dominar o setor de pesquisa de audiência ao incorporar as técnicas do outro instituto e, junto com a Globo, começa a desenvolver novas metodologias para orientar os publicitários sobre as melhores formas de maximizar o alcance da televisão como veículo para atingir o mercado consumidor.
Os fatos relatados até aqui vieram à tona em uma pesquisa realizada pelo Centro de Estudos da Metrópole, que procura entender como a televisão em geral se transformou em um veículo cujo objetivo principal é o de fomentar o consumo. A pesquisa demonstra como Globo, Ibope, anunciantes e publicitários tiveram importante atuação no desenvolvimento da televisão. Embora essa dinâmica tenha sido crucial no desenvolvimento desse meio de comunicação, essa ainda é uma história pouco conhecida, já que a preocupação com a memória é algo recente entre as emissoras.
A pesquisa, coordenada pela antropóloga Esther Hamburger, compreendeu duas abordagens complementares: a primeira, conduzida por Heloisa Buarque de Almeida, antropóloga da Unicamp, foi um histórico do desenvolvimento do setor de propaganda, através de revistas e de entrevistas com profissionais da área; a segunda foi conduzida por Tirza Aidar, demógrafa da Unicamp que, através da análise de um arquivo do Ibope depositado em 1999 no Arquivo Edgar Leuenroth, da mesma universidade, obteve os primeiros dados históricos de audiência para a cidade de São Paulo no período 1970 a 1997, no horário nobre das 18h às 22h.
Hegemonia global
Os números obtidos no arquivo do Ibope demonstram que, de fato, a rede Globo começa sua hegemonia na década de 70, confirmando uma hipótese antiga sobre a história da televisão brasileira que nunca havia sido comprovada com números. Os dados confirmam também que a dominância da Globo ocorreu em função de picos de audiência, conquistados com novelas que foram marcos de programação. O primeiro grande sucesso foi Irmãos Coragem em 1970, depois seguiram-se Selva de Pedra em 1972 e Roque Santeiro em 1975. Os números do arquivo confirmam: pelo menos em São Paulo, nessa década, a emissora atinge índices de 32% e ultrapassa a TV Tupi, líder até então. Ao longo da década ela chega a quase 50% em São Paulo e se mantém inabalável durante a década seguinte.
A hegemonia se mantém pela década de 80 e o quadro só muda na década de 90, quando os índices caem de 50% para 30%. ‘Com a redemocratização política e a entrada no mercado de outras alternativas à programação televisiva, como o vídeo e a TV a cabo, além da diversificação da programação, o domínio da Globo cai nesse período’, diz Esther Hamburger, coordenadora da pesquisa. A partir de 2000 ocorre uma recuperação, embora não sejam atingidos os patamares anteriores.
A análise também forneceu um perfil socioeconômico mais realista da audiência. A telenovela, por exemplo, não é um programa tão radicalmente feminino, conforme dita seu estereótipo, sendo o público dividido entre 60% de mulheres e 40% de homens. Os dados do Ibope também mostram que há uma predominância de telespectadores na classe média e não nas classes mais baixas, como se supunha. No entanto, nos períodos de baixa audiência, o perfil se aproxima do estereótipo, aumentando a porcentagem de mulheres e de membros das classes mais baixas.
Consumo feminino
Independente de serem maioria ou não, atingir o público feminino sempre foi uma grande preocupação dos anunciantes e publicitários, já que as mulheres ainda são consideradas as maiores consumidoras. ‘Embora os publicitários digam que sempre quem compra uma gama ampla de produtos (alimentícios, de limpeza, vestuário, de higiene pessoal, e mesmo eletrodomésticos) é a dona de casa, eles também afirmam que dona de casa é só o termo para quem faz as compras’, diz Heloísa. ‘Mas esse é um termo que feminiliza o consumo e o espaço doméstico, mostrando um corte de gênero mais amplo na sociedade brasileira. E é uma das categorias da pesquisa do Ibope – que divide as pessoas por sexo, idade, classe social, dona de casa com filhos e dona de casa sem filhos’.
Heloisa realizou sua pesquisa nos arquivos da revista Mercado Global , um órgão de divulgação da Rede Globo que é distribuído gratuitamente para agências de publicidade e setores de propaganda de empresas anunciantes, entre 1974 e 1996, que coincide com o período do arquivo do Ibope estudado na pesquisa. A revista se propunha justamente a ajudar profissionais da área de marketing a interpretar os dados do Ibope. Embora também tenha entrevistado diversos profissionais da área, a revista era um ponto de referência importante, até porque os entrevistados dependiam muito da memória, nem sempre confiável.
A pesquisa ajudou a entender como esse segmento passou a priorizar o público de classe alta e média alta, embora o público atingido pela televisão seja muito mais amplo, e como o sucesso da Rede Globo influenciou as estratégias de propaganda. Uma das estratégias da emissora que entrava em sintonia com os anunciantes era o fato de que ela usava vários núcleos numa mesma novela, de diversas faixas etárias e classes sociais, para atingir um público maior. As entrevistas também revelaram como os profissionais da área se utilizam dessas representações presentes nas novelas para associá-las também aos seus produtos.
Em busca da audiência perdida
Uma das maiores dificuldades na análise do arquivo foram as mudanças de metodologia de medição de audiência, bem como na classificação das classes sociais. ‘Empresas como o Ibope não tem a preocupação de fazer um registro histórico, procurando atender necessidades comerciais de curto prazo’, diz Tirza Aidar, responsável pela análise dos dados do arquivo. ‘Isso dificulta muito a análise, porque houve muita mudança metodológica ao longo das décadas’.
O primeiro método para medir a audiência foi o flagrante, com visitas à casa das pessoas para verificar o que estavam assistindo, utilizado de 1954 até 1981. A partir de 1977 foram introduzidos os diários, nos quais as pessoas deveriam anotar, de 15 em 15 minutos, o que estavam assistindo. Em 1985 o Ibope incorpora a empresa Audi TV e passa a utilizar o setmeter, aparelho eletrônico que verificava o canal sintonizado em determinadas faixas de horário, e marcava em fitas perfuradas que eram retiradas semanalmente. Em 1989, foi adotado o peoplemeter, que envia dados de audiência de minuto a minuto, diretamente do aparelho para a empresa.
A classificação social também mudou ao longo do tempo, não com o objetivo de buscar uma representação mais exata da população, mas sim de atingir o público consumidor de acordo com os interesses dos anunciantes. Assim, no final da década, a classe A/B, considerada como uma categoria única, foi desmembrada para delimitar melhor a classe alta, e em 1981 foi incluída a classe E, passando a dividir o mercado em cinco camadas.
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Veja aqui o texto completo da pesquisa.
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Jornalista, editor-assistente da revista diverCidade