Os seriados americanos andam praticando a fundo aquela velha falácia de que a arte imita a vida. Como se sabe, a tal ‘vida’ está exclusivamente na cabeça dos roteiristas ou, noutra palavra, no bolso dos patrocinadores. Mas, levada às telas do mundo inteiro, essa coisa, a fantasia, ganha força e se fixa. No ‘Brasil’, por exemplo, os seriados passam quase todos. E já temos colunistas vibrando com alguns personagens!
A semana passada, por exemplo, foi rica em fantasia ‘inteligente’ – o ‘mundo livre’ vibrou. O melhor debate político de todos os tempos entre candidatos a presidente aconteceu nos Estados Unidos (claro!), numa noite recente qualquer, na tela da NBC. O seriado era The West Wing (no ‘Brasil’, Warner Channel, sextas, 22h, canal 47 da Net); os debatedores, o ‘democrata Matt Santos’ e o ‘republicano Arnold Vinick’. Claro, são apenas personagens. O carismático Jimmy Smits vive Santos e o perfeito Alan Alda, Vinick. A fantasia é tamanha que ambos os candidatos, o democrata e o republicano – acreditem se quiserem – defendem o aborto. Na terra em que abortistas licenciados são assassinados, um republicano a favor do aborto… só rindo.
O tema já rondou vários episódios que mostraram as vísceras das campanhas, enquanto Martin Sheen vive os percalços finais de seu personagem Jed Bartlet na Casa Branca. Pois já há colunistas brasileiros dizendo que Vinick representa os 5% de republicanos inteligentes! Quem não viu o episódio do debate precisava ver a defesa – inteligente! – da indústria farmacêutica pelo insigne republicano.
A sorte é que existe um canal chamado National Geographic (33 da Net) que, a par de algum sensacionalismo, tem informação. Na série Assassinos microscópicos, o especial sobre a perigosíssima TBMR – a tuberculose multirresistente – mostrou que essa antiga doença evoluiu para uma modalidade intratável pelos medicamentos atuais. E deixou claro que à indústria farmacêutica não interessa investir na pesquisa de novos antibióticos, pouco lucrativos. Ela ganha mais com suas cápsulas milagrosas antiobesidade.
Um juiz carola
Mais incrível ainda: o jornalista de verdade Forrest Sawyer (rapaz inteligente!), âncora da própria NBC News e colaborador da MSNBC, foi contratado para moderar o debate entre os presidenciáveis. No sábado 21 a home do seriado ainda exibia o rescaldo do episódio (o de domingo seria um possível desastre nuclear na Califórnia, como se Arnold Schwarzenegger de governador não bastasse).
Sim, o debate teve grandes momentos, a começar pela quebra das regras rígidas impostas pelo ‘jornalista’ mediador. O maior deles foi a defesa, pelo personagem Santos, da ampliação do Medicare (que o ótimo tradutor, inteligentemente, transformou em SUS, o brasileiríssimo Sistema Único de Saúde) a toda a população (hoje é limitado aos maiores de 65 anos). Mas a fala vencedora foi, claro!, a do personagem Vinick defendendo a liberdade do mercado em tudo, da energia à educação. Um irresistível Alda nos faz esquecer de Bush e cair de joelhos, agradecidos, diante do deus-mercado. Roteiristas inteligentes de serviço! Como diria Ancelmo Góis, faz sentido.
E não é só: a luta contra a baixaria na TV e no rádio foi derrotada definitivamente num episódio de Law & Order, outro seriado de ponta da NBC (no ‘Brasil’, Universal Channel, canal 43 da Net). Uma combatente desta luta inglória acabou exposta como assassina fanática e mãe incapaz de cuidar dos próprios filhos – um deles, estuprador. O pano de fundo é um radialista famoso pela baixaria e que invoca extensiva e inteligentemente a liberdade de expressão. A indústria do entretenimento é, deveras, inteligente!
Na vida real, um juiz que cumpre seu papel vetou o ensino da “teoria” do “design inteligente” do estado da Pensilvânia, por não ser científica. E o Vaticano aplaudiu! Na época da filmagem deste horroroso episódio de Boston legal, Bush citava Deus a cada bomba jogada no Iraque, e Hillary Clinton estava com tudo a caminho da Casa Branca. Agora que Condoleezza é heroína até na mídia brasileira…
Mero reprodutor
Quando os tempos eram outros e o debate também – sobre o direito ao voto das mulheres e o de se ensinar o evolucionismo nas escolas –, a própria Hollywood tratou do tema brilhantemente em O vento será tua herança (Inherit the Wind). A história se passa em 1925, e o filme de Stanley Kramer, de 1960, com Spencer Tracy (o advogado de defesa liberal), Fredric March (o advogado de acusação, um fundamentalista) e Gene Kelly (o jornalista cético), é o melhor cinema de todos os tempos – roteiro, personagens, diálogos e atores são brilhantes. A TV filmou mais três versões: na de 1965 estão Melvyn Douglas e Ed Begley, com direção de George Schaefer; na de 1988, Jason Robards e Kirk Douglas, com direção de David Greene; em 1999, Jack Lemmon, George C. Scott e Beau Bridges, direção de Daniel Petrie.
Imagina-se que uma versão atual mudaria a história. Nos anos 60 interessava a Hollywood uma aeração dos costumes. Hoje, os patrocinadores exigem mais, querem chegar aos “nichos” fechados ao “liberalismo”. Exigência do mercado.
O grande negócio dos americanos é vender em casa e alhures a própria fantasia. Quando a imprensa do resto do mundo retratar esta realidade, talvez as nações conquistem alguma independência. Por enquanto, só resta torcer para que os brasileiros percebam as armadilhas de Hollywood. Ou um país de fantasia não basta? Os mitos que construíram a América continuam impulsionando este grande domesticador de povos – na vida real, no cinema e na TV.
Antes que algum americanomaníaco infira que este texto defende censura a Tio Sam, é bom esclarecer que a autora é a fã número 1 de Hollywood – e de suas lições. O que se cobra aqui é o papel precípuo de análise da imprensa. Ao lado das caras, nossas colunas de TV bem que poderiam retratar os intestinos. Até lá, este mero reprodutor de ilusões chamado ‘Brasil’ fica entre aspas.