Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Humor agonizante e excessos sentimentalóides

Engana-se quem pensa que as crônicas de Bial são o que há de mais piegas na TV Globo. Em Páginas da vida, à perene personagem Helena, que já adotou um afro-filho e um bebê com síndrome de Down, falta apenas um índio clunâmbulo para completar sua ONG doméstica. O autor Manoel Carlos, que costuma usurpar títulos de grandes nomes da literatura (Laços de família, de Clarice Lispector; Mulheres apaixonadas, de D. H. Lawrence), demonstra, com Jô Soares, como um gordo bonachão pode ocultar um pretensioso pedante: nunca uma novela promoveu um décimo, por exemplo, do festival internacional de Paraty quanto esta promove o aniversário de Rembrandt em Amsterdã.


A panela de Maneco não é das mais felizes: além de Regina Duarte em má fase, conta com as fracas atuações da capixaba Eliza Lucinda (atenuadas por seu carisma e beleza) e, interpretando a si mesma, Ana Botafogo (perdoada por sua estréia). Mas uma atuação de gala, como a Milu de Marília Pêra na novela das sete, se perderia nos personagens tediosos, de tão planos, que a novela das 21h anda desfilando.


A abertura, a despeito da bossa nova, também não ajuda: uma folhinha levitando sobre um parque infantil do Leblon, cuja autoria não consta nos créditos, assim como a da novela das sete, que faz um contraponto entre ricos e pobres varrendo uma imagem de água mineral para outra de… ‘água torneiral’. São concepções tão toscas que o refinado Hans Donner, que já está na fase de plagiar a si mesmo e assina a abertura da novela das seis, jamais assumiria como suas.


Páginas da vida é um sucesso tecnológico (a Globo é a mais bem equipada das produtoras da América Latina, onde a indústria da televisão, ao contrário de EUA e Europa, é mais forte que a de cinema), não apresenta novidades narrativas (a não ser que se considere inovadora a introdução de tomadas documentais do drama da Aids na África) e é um retrocesso em termos de conteúdo: exclui o humor. O padrão formal das telenovelas é em geral elevado pela migração de atores de teatro, que ali ingressam por motivos financeiros. (Em fluxo oposto, atores medianos, popularizados pelas novelas, apostam no teatro com peças caça-níqueis, baixando o padrão teatral).


Não parece ser o caso de Giannechini, atualmente em cartaz em São Paulo com uma comédia, e que fez parte do plot cômico da novela Belíssima, cujo esteio foram as participações de Fernanda Montenegro, Gianfrancesco Guarnieri e Lima Duarte, mas com roteiro escalafobético o suficiente para ser reivindicado por uma psicótica. Seu personagem, Pascoal, foi um completo fiasco; não conseguia se definir entre o caipira e o suburbano paulistano e resultou mais fronteiriço que o Jamanta.


Imitações constrangedoras


Há na indústria cultural o circuito ‘Alice no país do Projac-Prozac’, que se alimenta da vida pessoal das celebridades ou dos candidatos-a e está sempre pronta a elogiar seus feitos profissionais. São os maiores responsáveis pelo fenômeno ‘tudo posso naquele que me fortalece’, em que atores se tornam críticos de cinema, jornalistas se tornam popstars, cantoras, apresentadoras, humoristas se tornam escritores e atores; todos sob as bênçãos dos bajuladores midiáticos. Há os que de tão empolgados vão parar nos EUA, à cata de uma chance em Hollywood (onde descobrem que tudo é pago), e, para não dar o braço a torcer, por lá permanecem por toda a vida. Pois Gianecchini se convenceu de seu potencial como comediante.


Mas tudo o que a Globo quer é o que quer toda empresa privada: agradar o público, para poder lucrar (e, como empresa de comunicação, tentar eleger seus candidatos). A trama de América foi feita para cativar a audiência da Globo Internacional residente em Miami. Mas Glória Perez, que desperdiçou o talento histriônico de Matheus Nachtergaele com o Carreirinha, compôs muito bem o Gomes, militar da reserva comandando uma gafieira em Vila Isabel. De resto, resvalou nos mesmos excessos sentimentalóides de Manoel Carlos.


Há que se respeitar o melodrama, que teve origem na França do século 19 (mas já era presente nas narrativas orais) e foi classificado por Umberto Eco como ‘estrutura de consolação: o mal é apenas uma enfermidade social que poderá ser erradicado se for oferecida uma possibilidade de redenção fundada numa ajuda cristã fraternal’. No cinema o primeiro registro deste gênero foi o episódio A mãe e a lei, em Intolerância (1915), em que Griffith narra o desespero da mãe solteira (Lilian Gish) que tem seu filho arrebatado pelo Serviço Social. Irônico, ele introduziu o seguinte comentário, num dos quadros do filme: ‘Quando as mulheres deixam de atrair os homens dedicam-se ao assistencialismo’.


No cinema estadunidense, o melodrama teve grandes momentos com John Ford e Douglas Sirk. A televisão logo se apropriou do gênero, que sempre agradou às massas; nas novelas mexicanas, com tintas mais fortes, tornou-se dramalhão, e no Brasil ganhou matizes variadas.


O humor da Globo não está num grande momento. E não há aí nenhuma ironia. Os aposentados que não vão ao bingo no sábado esperam ansiosamente pela Gislaine do ‘isto não te pertence mais’. Humoristas históricos como Agildo Ribeiro e Paulo Silvino só conseguem arrancar sorrisos complacentes. Casseta & Planeta está no fim da linha. Não resta nada do grupo irreverente que, inspirado no inglês Monty Python, balançou as bases tradicionais do humor brasileiro na década de 80. Fez um único bom programa este ano, curiosamente o da semana após a morte do Bussunda: as enquetes e os esquetes se tornaram tolos ou chulos (com todo respeito ao chulo, na nossa tradição de Gregório de Mattos): nesses não há graça nem crítica, há a baixaria apelativa, tudo indica que para arrebanhar as crianças, que lhes são mais suscetíveis.


Aliás, o desespero é tal que puseram merchandising do ‘Isto não te pertence mais’ na boca do ator de 5 anos de Páginas da vida. O filme, em que Murilo Benício acaba se destacando, é proibido para menores, mas eles já estão de olho na locação de DVD, ao qual os guris terão acesso livre. Casseta insiste em imitações constrangedoras, como a Cicarelli de Maria Paula e o Tevez (há um divertido em A praça é nossa e um deprimido no West Ham [time atual do atacante argentino, na Inglaterra]). Resta saber se terão a dignidade de tirar umas férias para reciclagem ou vão agonizar anos a fio em praça pública, o riso forçado, ludibriando ‘baixinhos’ porque o show da caixa registradora não pode parar, tal qual Xuxa.


Reflexão e mudança


Mas é na Globo mesmo que se encontra o melhor programa de humor da TV brasileira: A grande família. E não há aqui saudosismo algum, de que uma produção criada há décadas manteve-se imune às influências modernas. A antiga ‘grande família’ era ancorada no talento de Golias, o melhor humorista brasileiro de seu tempo. Agora, num formato que me recuso a chamar de sitcom, pois surgiu antes de mais este estrangeirismo, além do luxo de contar com Marieta Severo e Marco Nanini, há um elenco de coadjuvantes talentosíssimo e uma equipe de roteiristas capazes de criar personagens como Mendonça, Marilda, Beiçola e Paulão da Regulagem, que estão no subúrbio de classe média baixa que Lula tratou de aumentar em todas as grandes cidades do país, não só do Rio de Janeiro. A grande família é o Brasil para brasileiros.


Mas, voltando às novelas, a Globo costuma reservar a faixa das 21h aos melodramas, a das 19h às telechanchadas e das 18h às reconstituições históricas. Como todo endividado, está tão ansiosa para recuperar seu investimento que vem reprisando precocemente um merecido sucesso, Chocolate com pimenta. O fato de estar recorrendo aos remakes (Sinhá Moça, O profeta) significa que não está encontrando autores que a agradem (mas por que não dar preferência a Dias Gomes e sua Saramandaia, a Macondo da mídia?), e não está podendo arriscar. A Bandeirantes vai estrear no dia 14 uma adaptação de romance de Camilo Castelo Branco, ‘Paixões proibidas’, dirigida pelo experiente Ignácio Coqueiro, mas com autor estreante, o crítico de cinema Amir Labaki. Vai encontrar a Globo bem vulnerável na sua trama hospitalar medíocre das 21h. Se Amir for bem-sucedido na Band, certamente terá lugar na Globo, que não tardou a contratar Benedito Ruy Barbosa quando surgiu, avassalador, com Pantanal, na extinta Manchete.


Foi assim que conquistou a liderança na teledramaturgia: investindo em equipamentos, contratando profissionais capacitados, cooptando os valores que despontavam nas outras emissoras. Demonizá-la, como fazem certos intelectuais, não é atitude científica; incensá-la, como faz a mídia-prozac, menos ainda. O correto é submetê-la à crítica, agente de reflexão e mudança, embora se saiba de antemão que, no sistema capitalista, é a redução dos lucros, e não a queda de qualidade de seu produto, a maior preocupação de uma empresa.

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Jornalista, professora da Universidade Federal do Espírito Santo e integrante da Rede Nacional de Observatórios da Imprensa (Renoi), pós- doutoranda em Ciências da Comunicação na USP e bolsista do CNPq