Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

JK, a musa do verão

A Rede Globo acertou na mosca: sabia que a mídia não pode conviver indefinidamente com o ano de nove meses. Era indispensável acabar com o lapso estival, a queda das audiências ao longo de quase três meses por causa das férias, calor, viagens e Carnaval. Era indispensável, sobretudo, tirar proveito do chamado ‘jornalismo de verão’, hoje uma devoção e onde cabe qualquer coisa, desde que renda um título aparentemente leve. Mesmo que sem pés nem cabeça.


As capas de Isto É e Época desta semana comprovam o acerto da Globo: o produto JK colou. Por enquanto, está exposto nas vitrines dos cadernos de variedades (aqueles que no passado eram chamados de culturais), em breve deve tomar de assalto as colunas políticas quando os candidatos a candidatos começarem a mostrar como são parecidos com o Nonô.


Antes disso, conviria que a legião de historiadores hoje instalada nas imediações das redações desse uma espiada no precursor da imprensa alternativa – portanto pai do Pasquim – o famoso Binômio, criação do mineiro José Maria Rebelo, para avaliar com um pouco mais de isenção o liberalismo de JK. Ou bater um papo com Millôr Fernandes para saber como foi a sua experiência de censurado nos Anos Dourados do Kubitchekismo.


Ainda não começou a discussão sobre a validade histórica da versão global. A minissérie está ainda no preâmbulo da sua vida política, onde as banalidades têm tanta dimensão quanto as relevâncias. Mas se é para mergulharmos de corpo e alma na pauta da Vênus Platinada vale a pena discutir o ‘efeito Carlota Joaquina‘, a caricatura histórica engendrada pela cineasta Carla Camurati que acabou substituindo-se à verdade histórica. Como a piada no Brasil tem sempre a precedência sobre a verdade, uma parcela da população brasileira imagina que as coisas se passaram como numa chanchada.


Já o fascinante Império à deriva, do jornalista Patrick Wilken (Objetiva, 2005, 326 pp.) trata do mesmo momento e dos mesmos personagens de Carlota Joaquina – a presença da Corte portuguesa no Rio, entre 1808-1821. Claude Levi-Strauss, o patriarca dos brasilianistas, considera-o ‘uma obra-prima escrita com erudição e grande talento literário’. Um australiano com larga vivência no Brasil teve mais sensibilidade para um momento crucial da nossa história do que uma intelectual brasileira inclinada para o esculacho.


Paradigma E o Vento Levou


Como no verão as ‘pensatas’ foram abolidas, também ainda não apareceu a esperada discussão sobre a possibilidade de meios de comunicação como o cinema e a TV comerciais serem fiéis aos acontecimentos e ao passado. A necessidade de ‘dramatizar’ nem sempre é a melhor amiga do drama histórico. A presença do narrador é considerada anticomercial, flashbacks são vetados assim como qualquer recurso narrativo capaz de ameaçar a linearidade da exposição.


A ficção histórica não é a única forma de tornar interessante o relato histórico ou biográfico. Acostumados com os cartapácios históricos produzidos na academia criou-se o mito de que a História é chata. E os historiadores, com raras exceções, resignaram-se à condição de maçantes, penosos e inalcançáveis. É muito confortável.


A vida sexual dos biografados é outro aspecto que justificaria uma discussão. A ‘ditadura da cama’ que hoje domina o biografismo (inclusive, ou sobretudo, o acadêmico, estimulado pelos estudos de gênero) produz distorções e distrações muitas vezes artificiais. Impossível ignorar a vida sexual de Maria Antonieta, mas as de Churchill ou Getúlio Vargas não tiveram qualquer efeito sobre as respectivas trajetórias.


O voyeurismo de certos públicos muitas vezes é bem menor do que a vontade de escandalizar de produtores, realizadores ou argumentistas. Outras vezes são estes que, por conveniências políticas, resolvem esconder aspectos da vida amorosa de personagens diretamente relacionados com a sua atuação. O que parece ter acontecido com o seriado JK. Aqui, ao que tudo indica, a ficção histórica vai funcionar ao contrário, para esconder.


A biografia de JK de Cláudio Bojunga lê-se como um romance sem qualquer estímulo apelativo. É claro que Bojunga, um gentleman, não faria qualquer reparo às opções narrativas feitas pela equipe de adaptadores do seriado da Globo [‘A reconstituição dos anos dourados‘]. Mas diante do extraordinário salto qualitativo do cinema brasileiro e das experiências do cinema internacional em material de fabulação e narração, faz falta uma discussão aberta e serena sobre o paradigma E o Vento Levou que ainda vige na maior parte das reconstituições históricas produzidas no Brasil.


E o que é exatamente uma reconstituição histórica? Um adereço de época, uma gíria, a trilha sonora, um automóvel do ano? O seriado da Globo sobre a vida de Juscelino Kubitschek de Oliveira pode ser mais útil do que originalmente se pretendia.