‘Às vezes, até admito que por excesso de escrúpulos, tenho vontade de escrever aqui sobre a importância do livro e não escrevo, porque não quero expor-me à suspeita de que advogo em causa própria. Afinal, sou escritor e, portanto, interessado em que a difusão do hábito de ler seja vigorosamente impulsionada. E o receio piora porque é surpreendente o número de pessoas que acha que escrever livros bem vendidos, o que por acaso acontece comigo volta e meia, é fonte certa de riqueza. Mesmo em conversas com gente informada, descubro que pensam que o que pagam pelos livros vai quase inteiramente para o bolso do felizardo autor e tomam um susto quando lhes conto como se passam as coisas. E, isto, embora não tenha muita importância para o que pretendo dizer, me motiva a uma explicaçãozinha preliminar.
Escrever com relativo sucesso de vendas não significa que o autor ganhe muito dinheiro. O que relato a seguir é genérico e esquemático, mas aplicável à maior parte dos casos. O autor costuma ganhar, quando ganha, de 5 a 12 por cento do preço de capa do livro. Ambos os extremos são excepcionais e creio que o uso geral é 10 por cento. Mais ou menos 40 por cento são do livreiro, 50 são do editor. As editoras corretas nesse campo, raras não há muito tempo, mas hoje bem mais encontradiças, costumam fazer uma prestação de contas ao autor de 6 em 6 meses. Imaginem um livro que venda 10 mil exemplares, o que é considerado magnífico, num país onde as tiragens costumam limitar-se a 2 ou 3 mil exemplares, a 20 reais cada. Ficam 2 reais por livro, pagos decorridos os 6 meses, o que dá um total bruto de 20 mil reais. Subtraiam-se a mordidinha de quase 30 por cento dada pelo governo e, às vezes, a comissão da agência que representa o autor. Sobram para ele, vamos dar de lambuja, uns 14 mil reais, distribuídos em 180 dias, ou seja, menos de 2 mil e 400 reais por mês, se não errei as contas. Claro, é mais do que a indecência paga a inúmeros profissionais qualificados, como, para ficar somente numa entre dezenas de categorias, professores. Mas, não chega bem a ser suficiente, como acham por aí, para que o escritor brasileiro de sucesso more numa cobertura tríplex com piscina, tenha um apartamento em Nova York e outro em Paris, durma com nove entre cada dez estrelas do show business e adquira o status econômico do dono do carro importado blindado que talvez more no mesmo bairro, por capricho ou sentimentalismo.
Não, não sou suspeito para tocar nesse assunto, que mereceria páginas e mais páginas de análise, mas que me vejo obrigado a resumir radicalmente aqui. O que se diz de besteira sobre o livro no Brasil daria para, ironicamente, encher uma biblioteca. Começa pela questão do preço. Livro é caro, sim, como é caro em praticamente todo o mundo. Mas uma caixa de CDs também é cara, muitas vezes bem mais cara que um livro. Além disso, o livro só exige olhos e, no máximo, um par de óculos, enquanto o CD requer um investimento, por modesto que seja, em aparelhagem. No entanto, não é incomum que um CD seja vendido às centenas de milhares. Os compradores têm o dinheiro para comprar livros, mas preferem comprar CDs. Nada contra os CDs, obviamente, mas a evidência da prioridade é clara.
Ao menos para os milhões de consumidores que compõem o mercado de CDs, portanto, o livro é acessível, mesmo custando caro. Mas não existe o hábito da leitura e a situação é estimulada a manter-se. O governo estava custeando um programa muito elogiado, através do qual adquiria livros a preços comparativamente minúsculos e os doava a alunos da rede pública do Brasil todo. Esse programa foi ‘suspenso’, porque o governo decidiu que necessita comprovar se os livros levados às casas dos alunos são efetivamente lidos. Para isso, com certeza, estabelecerá uma eficaz rede de assistentes sociais e educadores, que verificarão, de casa em casa, o destino dos livros, nos eternos cadastramentos e recadastramentos que são das práticas nacionais mais arraigadas. Claro que isso não será feito e a ‘avaliação’, se houver, acabará gestando um relatório escrito em tecnocratês abstruso e de conclusões insondáveis e inconseqüentes. Ou seja, o que se fez foi abortar um programa que, parece intuitivo, alguma coisa conseguiria e continuaria a conseguir, em favor da divulgação e da popularização da leitura.
Não entendo, o Senhor seja louvado, de impostos. Só faço, como a maioria de nós, pagá-los, para vê-los sumir na crônica falta de recursos, que, além das distorções monstruosas que a suscitam, ainda tem de arcar com a gatunagem perenizada em nossa vida pública. Mas, pelo que entendi, agora os livros importados estão sujeitos, digamos, à mesma carga tributária que perfumes ou bebidas. Ou que não seja isso, a produtos de importância muito inferior à dos livros. Estreita-se ainda mais a porta da atualização e do acesso à cultura universal, por parte dos que precisam dos importados, que não são apenas os ‘intelectuais’, designação aplicada a indivíduos meio sebentos e metidos a besta, sem serventia para a sociedade. Há outros, também intelectuais, mas não assim vulgarmente chamados, como engenheiros ou médicos.
O presidente da República, em dois ou três momentos, parece ter manifestado pouco apreço por livros, como quando, num de seus famosos improvisos, disse ao povo que ‘não é livro que ensina a governar’. Decerto não é, mas deve ajudar um pouco, como ajuda em qualquer atividade, e não configura bom exemplo um governante fazer pouco da leitura, como a afirmação terá sido percebida por muitos governados. Fala-se o tempo todo em exclusão digital, essa calamidade que nos aflige. Vamos combatê-la, sim. Mas vamos ter certeza de que, na hora de usar o computador, o recém-incluído conheça as letras do teclado.’
O CORONEL ROMPE O SILÊNCIO
‘Para relembrar uma história mal contada’, copyright O Estado de S. Paulo, 30/05/04
‘Luiz Maklouf Carvalho é um repórter. E isso significa, em suas palavras, estar sempre atrás de boas histórias. Em especial, de ‘boas histórias mal contadas’. Isso para que se possa tentar explicá-las melhor, justamente o que ele faz em O Coronel Rompe o Silêncio (Objetiva, 235 págs., R$ 34,90), em que reproduz 14 horas de entrevista com o coronel Lício Augusto Ribeiro, militar envolvido com a caçada aos guerrilheiros do Araguaia que, na década de 70, pretendiam, a partir da criação de ‘comitês populares’ espalhados pelo País, derrubar a ditadura.
Ao longo de mais de 30 anos de carreira, o paraense Maklouf contou uma série de boas histórias nas páginas de jornais como Resistência, O Estado do Pará, Movimento e o Estado. E algumas delas se transformaram em livros. Mulheres Que Foram à Luta Armada, por exemplo, publicado em 1999, reunia depoimentos de mulheres que participaram da luta armada contra a ditadura – e ganhou o Jabuti de livro reportagem. Já Cobras Criadas, de 2001, narrava a vida do jornalista David Nasser – e, de quebra, contava a história da revista O Cruzeiro, passando por personagens – de artistas a empresários – que marcaram profundamente o Brasil do século 20.
Agora, Maklouf voltou-se a um dos episódios mais misteriosos da história brasileira. Na década de 70, o Partido Comunista do Brasil (PC do B) colocou em prática a tática de criar ‘comitês populares’ no interior brasileiro, com a intenção de, a partir desses focos de resistência, derrubar a ditadura. Em resposta à iniciativa, o Exército destacou um efetivo de cerca de 5 mil homens para a região do Araguaia. Foram travadas muitas lutas durante um período de três anos – 59 guerrilheiros foram mortos e, desses, apenas um corpo foi encontrado, e até hoje, informa o livro, os arquivos do Exército sobre a operação continuam indisponíveis – segundo fontes oficiais, foram queimados.
Na época major-adjunto do Centro de Informações do Exército, Lício Augusto Ribeiro Maciel atuou na repressão aos guerrilheiros desde a primeira campanha, em abril de 1972. E foi a partir da citação de seu nome no livro A Ditadura Escancarada, de Élio Gaspari, que Maklouf de Carvalho aventou a possibilidade de encontrar Lício Augusto Ribeiro, na tentativa de aparar arestas na história do episódio. Começou do zero, foi à lista telefônica e de lá saiu com seu número de telefone. Começaria, então, o processo de convencê-lo a se encontrar com ele e dar um depoimento.
‘Não era um tema sobre o qual ele gostaria de falar assim de primeira’, diz o autor, lembrando que, antes do primeiro contato pessoal, foram dez telefonemas de negociação. Enfim, encontraram-se. Foram três sessões em dezembro do ano passado, na casa do coronel, no Rio – a última delas, na noite de Natal. O livro narra, de modo sucinto, mas envolvente, essa negociação, assim como as primeiras impressões que o entrevistado provocou no repórter. No final das contas, foram 14 horas de conversas.
‘Em nenhum momento ele se recusou a responder perguntas, sempre deixou claras suas posições’, diz Maklouf. E por que quis falar agora? ‘Esse é um assunto que voltou recentemente a ser discutido e, como personagem envolvido diretamente nos combates, não lhe agradavam as versões que circulavam. Pude perceber nele uma forte indignação com relação ao silêncio do Exército, a intenção de reafirmar que estava numa missão, cumprindo ordens.’ Para o repórter, restou o trabalho fundamental de retirar do entrevistado não apenas o que ele queria dizer. O resultado é um relato ‘rico, dramático’, que une as entrevistas a uma extensa pesquisa sobre o assunto, ajudando a jogar luz sobre um episódio ‘sombrio’, como diz o livro, de nossa história.’
FAMA & ANONIMATO
‘Viagens ao tempo da reportagem’, copyright Gazeta Mercantil, 28/05/04
‘Passou pela cabeça irrequieta do irlandês Peter Toole ser jornalista. Na adolescência ele até trabalhou em uma redação, do ‘Yorkshire Evening News’, em Leeds, Inglaterra, como contínuo e assistente de fotógrafo. Observador, acabou por entender que o jornalista fica sempre à margem – fala sobre os famosos, sem ficar famoso ele próprio. Desistiu e foi tentar a carreira de ator.
Quem ouviu a confidência, em um bar de Dublin, em 1963, foi o repórter Gay Talese, um americano filho de calabrês, quando trabalhava em um perfil do ator para a revista ‘Esquire’. Esse jornalista, exatamente quando o interlocutor saía do ‘News’, 1947, começara a escrever uma coluna sobre beisebol no ‘Sentinel-Ledger’, em sua cidade natal, Ocean City, Nova Jersey. Ou seja, ginasiano de 15 anos, escolhera, como meio de ganhar a vida, falar de famosos.
Curioso encontro de certezas antagônicas, o dessa dupla. Peter OToole, hoje aos 72 anos, evidentemente fez boa escolha. Ganhou a fama perseguida numa carreira cujo ponto mais cintilante foi o monumental Lawrence da Arábia, de David Lean, de 1962. Tropicou por baixo, mas sobreviveu. Agora mesmo, foi convocado pelo diretor Wolfgang Petersen para dar algum verniz artístico à recém-estreada megaprodução ‘Tróia’.
Gay Talese, mesma idade, também acertou, pois provou ser possível ao jornalista não viver apenas marginalmente. Brilhou na profissão. Primeiro como repórter do ‘The New York Times’, de 1956 a 1965, onde já trabalhara, por curto período e em função subalterna, em 1953, recém-saído da Universidade do Alabama. Depois, como free-lancer para revistas, como ‘Esquire’, ‘The New York Times Magazine’ e ‘Saturday Evening Post’. Finalmente, como autor de livros de sucesso – veja bibliografia – a cada passo aprimorando uma peculiar técnica de reportagem.
Um dos livros que o celebrizou, uma preciosidade, chegou recentemente às livrarias, lançado pela Companhia das Letras: ‘Fama & Anonimato’ (Fame and obscurity) com tradução de Luciano Vieira Machado. A maior parte dele é conhecida sob o título ‘Aos Olhos da Multidão’, com tradução de Áurea Weissenberg, editado pela Expressão e Cultura, em 1973, era posse de poucos privilegiados, que o fizeram circular em centenas de cópias xerográficas, especialmente para jornalistas. Não se pode chamar a edição atual de simples relançamento, contudo, pois foi enriquecida com dois textos recentes do autor, revisitas a reportagens anteriores, mais um posfácio do jornalista brasileiro Humberto Werneck. São três livros em um, ou três séries de reportagens inesquecíveis que, nos EUA foram colecionadas em livro, separadamente ou juntas, como na presente edição brasileira.
Na primeira parte, o poderoso protagonista central é Nova York. Em cinco textos deliciosos, Talese junta centenas de fiapos de informações sobre a cidade, mostra alguns lugares memoráveis e dezenas de flashes sobre os tipos esquisitos que vivem nela, alguns deles com formas bizarras de ganhar a vida – como os dois coveiros de cavalos ou os detetives especializados em perseguir ladrões de livros em bibliotecas. Trinta anos depois, o jornalista reconheceria nesses textos uma ‘visão juvenil de Nova York, dinamizada por uma mistura de admiração e espanto’.
Na edição atual foi cometido um pecadilho, para olhos e ouvidos brasileiros nesse segmento. ‘Nova York: a jornada de um serendipitoso’, título dado ao capítulo, soa forçado, embora seja o dado por Talese à edição original americana, de 1961. É baseado na palavra serendipity, muito usada por acadêmicos. Explicá-la por inteiro requer um tratado. Para simplificar: é algo assim como a descoberta, por acaso e sorte, de algo muito superior ao objeto originalmente procurado, durante uma pesquisa. Ora, Talese descobriu lugares e tipos da Big Apple não por acaso – pois estava atrás deles – e muito menos por sorte, mas por pertinaz, como deve ser o bom repórter. Valia mais manter o subtítulo de ‘Aos Olhos da Multidão’ – ‘Nova York – Viagem de um Descobridor’.
Encerrada a jornada pelas ruas, a segunda parte do livro – ‘A ponte’ – passa a contar a trajetória dos boomers, operários metalúrgicos especializados na construção de pontes, assim chamados por correrem cidade após cidade, mesmo fora dos EUA, na trilha do boom desse tipo de construção, ocorrido na década de 60. As dez reportagens que compõem essa parte foram feitas durante a construção da ponte Verrazano-Narrows, que liga o Brooklin a Staten Island.
A reportagem se inicia com uma saga americana reversa, o drama de centenas de famílias (do lado do Brooklin), que tiveram suas casas desapropriadas e derrubadas para reurbanização da área. Pequenos proprietários, artesãos ou trabalhadores assalariados e avulsos, todos de repente com as raízes arrancadas.
Depois, vem a seqüência apaixonante: o cotidiano da construção, a vida dos operários, dentro e fora do trabalho. Um mundo meio selvagem de gente que, num trabalho exercido a 180 metros acima da água, tinha garantia certa de vida dura… mas nenhuma de vida longa e, por isso, queria viver depressa.
Durante quatro anos Talese acompanhou os operários. Tinha seu próprio capacete, pois subia nas vigas com eles. Saía com eles nos fins de semana, especialmente nas visitas às famílias por um grupo especial de trabalhadores, os índios da reserva de Caughnawaga, perto de Montreal, Canadá. Descreve essas escapadas, ‘com motoristas encharcados de uísque, muito mais assustadoras que as andanças nas alturas, nas estreitas vigas da ponte, em dias de mais vento’.
Essa parte do livro mereceu uma atualização, ‘Na ponte’, publicado originalmente na revista ‘The New Yorker’ em dezembro de 2002, o primeiro dos apêndices deste ‘Fama & Anonimato’. Acompanhando uma equipe de operários que limpava a ponte, o repórter reencontrou lá uns poucos antigos personagens sobre os quais falara antes, soube da vida (e da morte) de outros.
Os famosos só aparecem na terceira parte do livro, ‘Excursão ao Interior’, uma série de 11 perfis – entre os quais aquele de Peter O Toole e de três ícones americanos de todos os tempos, os boxeadores Floyd Paterson e Joe Louis e o jogador de beisebol Joe DiMaggio.
O mais famoso deles é ‘Frank Sinatra está resfriado’. Não porque o repórter tenha conseguido arrancar do cantor alguma revelação transcendental. Exatamente pelo inverso: Sinatra não falou uma palavra com ele, pois o tal resfriado, acidente menor na vida de qualquer pessoa comum, para o mito era uma tragédia capaz de isolá-lo do mundo. A recusa da entrevista – que fora acertada pelo RP de Sinatra com a revista ‘Esquire’ – não desanimou Talese. Durante seis semanas ele falou com gente da entourage de Sinatra, que empregava então 75 pessoas, incluindo a senhora que cuidava de suas perucas e apliques.
Mais que isso, observou o quanto pôde o cantor, inclusive durante a gravação de um especial para a TV. O material apurado resultou num perfil magnífico. Na nova edição do livro, valeu o segundo dos textos ‘de atualização’ de Talese no apêndice ‘Como não entrevistar Frank Sinatra’, no qual ele lembra os acontecidos no inverno de 1965, quando a reportagem foi feita.
Entre os jornalistas, há ‘partidos’, quando se fala dos perfis deste livro. Concorre com o de Sinatra a favorito o de um não famoso: ‘Sr. Má Notícia’. É a história de Alden Whitman, jornalista do ‘The New York Times’ que ‘o dia inteiro, enquanto seus colegas correm de um lado para outro, em busca do momento presente, fica tranqüilamente sentado à sua mesa, tomando chá, mergulhado em seu estranho mundo de semimortos, semivivos, naquele recinto imenso chamado redação’. Whitman era o redator de necrológios do Times, cuja tarefa cotidiana era a de atualizar biografias de celebridades e estar atento ao estado de saúde delas, para que seus textos estivessem prontos e corretos para quando fossem necessários.
Embora leitura recomendada para qualquer pessoa que aprecie a inteligência e o bom texto, ‘Fama & Anonimato’ é, em primeiro lugar, um livro para jornalistas. Para os novos, ou candidatos a, é aula inesquecível; para os veteranos, é agradável nostalgia, ao mostrar o que a reportagem já foi e que, infelizmente, não é mais. Pois está aí o melhor exemplo do ‘novo jornalismo’, sopro rejuvenescedor que passou pela imprensa norte-americana na década de 60 que teve, além de Gay Talese, Norman Mailer, Tom Wolfe, Truman Capote – para citar os mais conhecidos – e outros. O truque dessa turma não era romancear os fatos, como acusavam os detratores, mas apresentá-los sem as algemas do clichê e do lugar-comum, como quem está contando uma história. Naturalmente, era preciso ter um texto acima da média.’