Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornal Nacional e sua nação de batuqueiros

O Brasil é enorme. Somos 188.917.618 de pessoas espalhadas do Oiapoque ao Chuí. Apesar da vastidão territorial e das diferenças geográficas, falamos todos a mesma língua e nos reconhecemos como cidadãos brasileiros. O antropólogo Darcy Ribeiro considerava isso um feito.

O analfabetismo, embora tenha diminuído nos últimos 60 anos, ainda atinge cerca de 15 milhões de nativos. A circulação diária dos dez maiores veículos impressos no Brasil é de aproximadamente dois milhões de exemplares. O acesso aos meios digitais ainda é modesto. Computador ainda é um artigo de luxo. Por outro lado, cerca de 90% dos lares brasileiros possuem ao menos um aparelho de TV. Por excelência, a televisão é o principal e mais abrangente meio de comunicação do país.

Somos um país de poucos leitores, mas de rica cultura oral e, nos tempos contemporâneos, uma tendência evidenciada pelo hábito de assistir televisão. Mais do que um aparelho eletrônico, ela se insere no ambiente doméstico e cotidiano do brasileiro. É da ordem do privado, do íntimo. Ela unifica o país e contribui para dar-lhe uma identidade única.

Salvo algumas programações regionais, a TV comercial aberta exibe praticamente o mesmo conteúdo para todos os lares deste país gigantesco. Ela atinge a todos indiscriminadamente e, sob esse aspecto, é um veículo democrático.

Um povo festivo

Como nenhum outro meio de comunicação de massa, é responsável pela produção de bens simbólicos, disseminação de conteúdo e partilhamento de códigos culturais. É de sua própria natureza massiva, repercutir, em larga escala, imagens, representações, temas, valores, formas de procedimento e de condutas. A TV, bem ou mal, torna o mundo acessível a todos. Também é um espaço de falas e de discursos sociais. Para uma horda imensa de indivíduos, os telejornais propiciam o único contato com a longínqua política dos bastidores palacianos do Planalto Central. Somente por essas premissas apresentadas, a televisão e seus produtos merecem e demandam serem pensados.

De todos os nossos telejornais, o Jornal Nacional é, indiscutivelmente, o de maior audiência. Ali, o valor da notícia pode ser mensurado. Dentro da grade de intervalos comerciais da Rede Globo de Televisão, é o espaço mais nobre e caro da emissora. Trinta segundos de comercial de veiculação nacional custam para o anunciante 291 mil reais.

O Brasil pode ser pensado a partir da importância de sua televisão. E nesse estudo, cabe, no mínimo, um capítulo inteiro somente para os códigos disseminados pelo Jornal Nacional. Pelo conteúdo editorial deste veículo, somos um país que ama o seu carnaval e que não pode ouvir um batuque sem sentir imediatamente uma alegria que país nenhum tem igual. Somos um povo festivo que tira a vida, e suas agruras, de letra.

Líder religioso carismático

Somos, também, católicos fervorosos e devotos do recém-santificado frei Galvão. Amamos o papa e cremos que Sua Santidade é o verdadeiro e único representante de Deus aqui na Terra. E, é claro, todos somos fanáticos por esporte e já estamos cansados de tanto esperar pelas emoções do Pan 2007 que será na maravilhosa cidade do Rio de Janeiro.

Pois, desde o início deste ano, pelo menos um desses assuntos ocupou boa parte dos 40 minutos de jornal todos os dias, cumprindo, assim, uma agenda que interessa financeiramente à emissora.

Com os direitos de retransmissão da ‘maior festa popular brasileira’ garantidos, no mês de janeiro já fomos contemplados com reportagens sobre mestres de bateria, a magia da avenida, os artesãos anônimos do grande espetáculo, o trabalho intenso nos barracões das escolas de samba, a história da ala das baianas e a alegria desta boa gente brasileira.

Terminado o carnaval, entrou a visita do papa. Vale ressaltar que somente a Rede Globo teve um aumento de audiência com a cobertura jornalística da vinda do pontífice. Ela fez por merecer. Durante quase dois meses acompanhamos a evolução dos bordados dos paramentos que Bento 16 usaria em terrae brasilis, a cadeira em que se ia sentar, os projetos das grandes missas, como seriam os palcos, a segurança, os preparativos de Aparecida (SP), os músicos que tocariam nas celebrações, o que ele ia comer e quem ia cozinhar, as receitas, o que os bispos vestiriam, quem viria à festa e quem teria a bênção de conhecer o papa.

Nenhuma reportagem sobre o seu passado polêmico na juventude hitlerista e tampouco sobre a perseguição empreendida por ele, quando chefe do Santo Ofício, contra a ala mais progressista da Igreja Católica Romana. Leonardo Boff passou ao largo da cobertura da emissora. A pauta era transformar o alemão em um líder religioso carismático e amado por todos.

Controle remoto pode ser revolucionário

Sai, finalmente, o papa e entra o Pan 2007, do qual a emissora também tem exclusividade de transmissão. Já há um tempo e várias edições, somos apresentados a todos os atletas brasileiros que participarão, seus sonhos, conquistas, a cama em que eles dormirão na vila do Pan, a beleza de todas as instalações construídas, a simpatia do carioca que receberá os turistas e um Brasil apto a sediar alguma Olimpíada ou Copa do Mundo num futuro próximo. E nada sobre as contas escandalosas da construção da infra-estrutura do campeonato, que já consumiu a bagatela de 3,2 bilhões de reais dos cofres públicos e ainda não está terminada. O orçamento previsto em 2002 era de 409 milhões de reais. Uma variação de míseros 684%.

A Rede Globo e a editoria do Jornal Nacional abrem mão de um jornalismo crítico em detrimento de agendar o público para a sua programação adquirida. Aliás, o agenda setting é uma das teorias do jornalismo. A teoria investiga a capacidade e os limites da mídia em agendar, ou pautar, os assuntos do cotidiano e a opinião pública. Perscruta até que ponto a conversa na rodinha de amigos reflete o conteúdo dos jornais. A hipótese nunca foi comprovada, até porque são inúmeras as variáveis nesta relação complexa e dialógica entre mídia e público. Não se sabe até que ponto a primeira ecoa no segundo, suas preferências e hierarquia das notícias.

Os efeitos da imprensa são limitados, mesmo na televisiva. O público tem dinâmica própria e a Globo bem o sabe ao medir constantemente, por exemplo, a audiência de suas novelas, para então modificar o enredo ou o destino de seus personagens. Mas que ela tenta agendar a nossa vida, preferência e temas de conversa… ah… isso ela tenta!

***

PS: Claro que nenhuma crítica aqui exposta equivale a um pedido de encerrar a concessão da emissora. Por acreditar na opinião pública e no livre exercício da democracia, penso que cada um é apto a escolher o que ou como assistir sem a interferência do Estado paternalista. Sobre mim, por exemplo, a emissora tem conseguido o efeito contrário ao desejado. Nem a história da rede, por muitas vezes obscura, justificaria tal ato. Ao público cabe escolher e é de seu livre arbítrio assistir ou não. O controle remoto pode ser revolucionário. Acredito, inclusive, na capacidade dos profissionais do jornalismo repensarem e reformularem sua prática profissional.

Quando este artigo for publicado, a RCTV venezuelana já terá sido fechada, em nome do povo, calando a única voz televisiva de alcance nacional – antagônica e não agendada pelo presidente Hugo Chávez.

******

Estudante de jornalismo da Universidade Fumec, Belo Horizonte, MG