Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Jornalista desvenda o enigma Vandré

O jornalista Geneton Moraes Neto conseguiu o inimaginável, que foi entrevistar o cantor e compositor paraibano Geraldo Vandré para o programa Dossiê Globo News, exibido no último sábado (25/9). Trata-se de um dos melhores programas de entrevistas da TV brasileira, pois além de simples e inteligente, também evita a viciada fórmula do talk show.

A entrevista foi conseguida pela produtora Mariana Filgueiras, depois de quatro meses de negociações com o artista. A gravação foi feita no Clube da Aeronáutica, no Rio de Janeiro, em 13 de setembro, dia em que Vandré completava 75 anos. O artista quebrou um jejum de quatro décadas sem falar com a televisão, período no qual raramente apareceu em público.

Na conversa com Geneton, que pode ser conferida no site da Globo News, Vandré aparece de boné verde-oliva e camisa branca com o símbolo da Aeronáutica no peito, barba e cabelos longos e brancos, olhar de bicho acuado e um sorriso desconfiado nos lábios. Ele nega que tenha sido torturado ou sofrido lavagem cerebral, como tanto se alardeou desde seu retorno ao país, em 1973, em plena ditadura Médici.

Da clandestinidade à volta do exílio

Após a decretação do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, Vandré passou um período escondido na fazenda de dona Aracy, viúva do escritor Guimarães Rosa, até que finalmente deixou o Brasil clandestinamente. Sua reclusão ocorrera depois de ser alertado pela jornalista Dedé Gadelha, então mulher de Caetano Veloso, logo após a prisão deste e de Gilberto Gil, em São Paulo.

Depois de quase cinco anos morando e se apresentando em outros países, Vandré voltou ao Brasil e gravou um depoimento negando ter qualquer engajamento político. Na ocasião, ele prometeu só fazer canções de amor. No entanto, interrompeu a carreira, reaparecendo mais tarde apenas para divulgar a música ‘Fabiana’, dedicada à Força Aérea Brasileira, ‘o exército azul’, como costuma chamar.

O tal vídeo no qual ele teria se retratado com os militares desapareceu misteriosamente, bem como suas imagens interpretando a canção ‘Pra não dizer que não falei das flores’, durante o Festival Internacional da Canção de 1968. Na ocasião, a profética ‘Sabiá’, de Tom e Chico Buarque, foi a grande vencedora da noite. Contudo, a música de Vandré ganharia as ruas, tornando-se um hino contra a ditadura.

O falso mártir da canção de protesto

Desde o auge da ditadura no país, a esquerda festiva passou a alimentar o imaginário popular com lendas e mitos que nem sempre correspondiam à verdade. Vandré carregou nas costas a fama de mártir da canção de protesto, termo que hoje renega categoricamente. Sua tragédia pessoal era muitas vezes comparada à de Victor Jara, o poeta chileno barbaramente assassinado durante a ditadura do general Augusto Pinochet.

Outro brasileiro que viveu fenômeno semelhante ao de Vandré, mas às avessas, foi o cantor Wilson Simonal. Considerado dedo-duro por alguns esquerdistas, ele teria delatado companheiros de profissão que se opunham aos militares. No entanto, embora no auge da fama e da arrogância tenha se vangloriado de ser ‘amigo dos homens’, ninguém jamais testemunhou que ele de fato tivesse trabalhado para a comunidade de informações. Vítima de uma trama kafkiana, Simonal passou o resto da vida tentando em vão provar a inocência. Ironicamente, sua última foto foi ao lado de Vandré, que fora visitá-lo no leito de morte.

Na entrevista a Geneton, Vandré garante que nunca foi anti-militarista ou filiado a qualquer partido político. Ele critica a cultura de massas que aliena o povo e afirma que não tem mais o que dizer, uma vez que não existe espaço para a arte popular no país. É bem provável que esteja sendo sincero, pois fora transformado num símbolo da resistência democrática sem se dar conta do vespeiro no qual se metera. A moda era fazer arte engajada e certamente ele embarcou na onda, sendo explorado à exaustão pela indústria fonográfica sem nem sempre ser devidamente remunerado.

Quando a lenda é maior que a verdade

Ainda na entrevista, Vandré compara a urbanização desenfreada a um grande genocídio e afirma que a miséria aumentou no país, onde as coisas só pioraram desde o seu tempo. Isso demonstra que atrás da aparente alienação forçada arde a chama da indignação de um homem lúcido, que recusa a falsa imagem de herói que tentaram lhe impingir. Formado em Direito, ele se define como ‘advogado num tempo sem lei’ e garante não ter se beneficiado da anistia por não se reconhecer criminoso.

Independentemente da questão política em si, o fato é que Geraldo Vandré terá seu lugar na história como um dos maiores compositores populares de sua geração. De forma inquietante e inovadora, ele cantou a paixão, a dor das perdas e os problemas sociais de seu tempo. Foi o primeiro a gravar uma canção de Chico Buarque (‘Sonho de Carnaval’), a quem elogia pelo talento. Fez parcerias com artistas importantes, como Carlos Lyra, Baden Powell, Fernando Lona e Theo de Barros, co-autor de sua clássica ‘Disparada’.

Resumindo a ópera, Vandré foi um grande artista que se viu esmagado pelo próprio mito. Seu enigma lembra o do protagonista do filme ‘O Homem que Matou o Facínora’, de John Ford. Depois de relatar a realidade dos fatos durante uma entrevista, o herói que se elegera senador ouve de um jornalista a frase lapidar: ‘Quando a lenda é maior que a verdade, publica-se a lenda.’

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Escritor e jornalista, Belo Horizonte, MG