“Não é por acaso que a demarcação rigorosa entre informação e publicidade, e entre espaço informativo e espaço publicitário, é uma marca irrenunciável da imprensa de qualidade. Um jornal redigido e editado fora de ‘qualquer dependência de ordem ideológica, política e económica’ — como o PÚBLICO se define no seu estatuto editorial — não pode permitir que se instale qualquer confusão ou suspeita de contaminação entre a informação que produz e os interesses comerciais da empresa que o edita.
É num período como o que atravessamos, de enormes dificuldades financeiras para as empresas jornalísticas, afectadas pela crescente insuficiência das receitas publicitárias de que depende a sua própria sobrevivência, que mais decisivo se torna zelar pela clareza desta demarcação — que é uma garantia de independência, uma condição de credibilidade e um imperativo de lealdade para com os leitores.
É em nome desses valores que importa resistir à crescente pressão de muitos anunciantes ou agentes publicitários que procuram por todos os meios, mais clássicos ou mais criativos, esbater os traços da fronteira entre a informação e a propaganda comercial. Fazem-no com o intuito de ampliar o alcance das suas mensagens, que julgam tornar mais credíveis num contexto de alguma ambiguidade ou permeabilidade entre informação e publicidade, beneficiando da credibilidade do órgão informativo que lhes serve de veículo.
É uma estratégia que proporcionará algum sucesso imediato, mas que comporta riscos a prazo para quem a promove. Por um lado, irrita muitos leitores, como mostram as queixas que recebo acerca de textos supostamente influenciados por um qualquer interesse comercial, que na maior parte serão injustificadas, mas indiciam uma saudável susceptibilidade neste domínio. E arrisca-se, por outro lado, a voltar-se contra si própria, se um órgão informativo que aceite ultrapassar os seus limites estatutários em relação à publicidade vir por isso inevitavelmente danificada a sua própria credibilidade.
Não são, no entanto, as estratégias publicitárias o que aqui me cabe comentar, mas as opções editoriais e o serviço aos leitores, no âmbito dos compromissos que o PÚBLICO com eles livremente estabeleceu e que se encontram inscritos no Livro de Estilo do jornal. Nesse quadro normativo, que é no geral comum a toda a imprensa de qualidade, a separação entre espaço noticioso e publicidade garante-se, em primeiro lugar, nos próprios textos informativos. Neste plano importa acautelar tanto regras como aparências, face a alguns procedimentos que têm vindo a tornar-se comuns no contexto de maior debilidade financeira das empresas jornalísticas. É o caso — entre outros que merecem reflexão — das notícias ou reportagens ligadas à apresentação ou divulgação de produtos comerciais (frequentemente integradas em campanhas publicitárias não claramente assumidas como tais), em que as despesas associadas à deslocação de jornalistas são pagas pelos agentes económicos directamente interessados. Como já defendi neste espaço, não basta que o PÚBLICO anuncie com transparência (como o faz) que essas viagens são pagas por terceiros: a aceitação desses convites só é justificável quando o seu objecto se enquadra com clareza na agenda informativa do jornal, de acordo com os critérios de relevância e oportunidade que devem guiar a ocupação de um espaço editorial que é escasso e deve ser gerido sem condicionamentos estranhos ao jornalismo.
A demarcação entre informação e publicidade deve ainda exprimir-se no plano gráfico, de um modo que poderá ser visto como simbólico, mas que é inseparável da dignidade do próprio jornal e da nobreza da sua missão informativa. O Livro de Estilo do PÚBLICO prevê um conjunto de regras, entre as quais a de que todo o material publicitário deve ser ‘assinalado de forma clara e explícita, que evite confusões ou associações ambíguas à mancha informativa’. E, em defesa da dignidade do espaço informativo, impõe várias restrições específicas à paginação de publicidade, como a que estabelece que ‘a primeira e última páginas (…) só poderão incluir manchas publicitárias de canto ou rodapé, salvo circunstâncias ou contratos especiais’.
À luz destes princípios, parece no mínimo discutível que se tenha ocupado a área central da capa da edição do passado dia 31 de Outubro com um anúncio a toda a largura da página, que à primeira vista se confunde facilmente com um tipo de manchete (ou segunda manchete) com título sobre fundo fotográfico que é comum no modelo gráfico do PÚBLICO. Nele se lia apenas, junto aos rostos de três actores fotografados: ‘Hoje, às 19:55, a nossa troika vai falar em directo aos portugueses’. Quem viu a edição seguinte terá compreendido que se tratava um ‘aperitivo’ da campanha publicitária de uma entidade bancária, que viria a aterrar em força no PÚBLICO de 1 de Novembro. Suponho que as referências a ‘hoje, às 19:55″ e a ‘falar em directo’ pretenderiam remeter para o lançamento da campanha em formato televisivo nesse mesmo dia 31.
Dando por certo que se tratou de um ‘contrato especial’, já não se afigura nada evidente que o dito anúncio tenha sido assinalado ‘de forma clara e explícita’ e evitando ‘associações ambíguas à mancha informativa’. Não existindo qualquer referência à identidade do anunciante (o que está longe de ser ‘claro e explícito’), a enigmática referência à ‘nossa troika’ levaria a supor, numa primeira impressão, que se tratava de uma iniciativa do PÚBLICO. Não espantaria que alguns leitores tenham folheado o jornal à procura de uma história inexistente, tomando por lapso a ausência de remissão para uma página interior nesta ‘chamada de capa’, antes de descobrirem a canónica e minúscula sinalização de ‘publicidade’ sobre o canto superior direito do que lhes terá parecido uma normal chamada de primeira página. Se depois disso se sentiram intrigados e interessados em perceber que mensagem ‘aos portugueses’ seria afinal aquela, a ideia publicitária terá resultado em pleno. À custa, na minha opinião, das boas práticas de demarcação entre informação e publicidade.
A directora do jornal, Bárbara Reis, não pensa assim. Reconhece que o anúncio, ‘sobretudo por causa do seu tamanho’, não beneficia a capa e que ‘rouba espaço precioso à informação’. ‘Mas ambíguo não é’ — sustenta, argumentando que os rostos que mostra são os de ‘três dos mais famosos actores do país’ e que a campanha estava ‘disseminada nas televisões e ruas das cidades’.
Na edição de 1 de Novembro, esta campanha bancária envolvia totalmente o PÚBLICO, tal como outros jornais, numa sobrecapa inteiramente publicitária, com o logótipo do jornal a juntar-se ao do anunciante dentro do próprio anúncio, o que também é questionável, embora acabe por ser a única forma de, nas bancas, se distinguir este dos outros jornais embrulhados na mesma imagem comercial.
A moda das ‘capas falsas’ já não é recente e é prejudicial para a identidade do jornal, que assim renuncia a expor a sua primeira página. Quis saber se a direcção não teme que a banalização deste recurso publicitário possa fazer do PÚBLICO um objecto indiferenciado nos locais de venda. Bárbara Reis considera que ‘não há qualquer banalização’ e adianta números: ‘Em 2011 [até anteontem] publicámos sete ‘capas falsas’ (como a do dia 1) e sete ‘acções de capa’ como a do dia 31 (ou seja, anúncios que não são as pequenas ‘orelhas’ ou os rodapés comuns). Num ano de crise severa, 14 excepções em 365 dias é uma proporção que consideramos aceitável e, precisamente por ser pequena, esperamos receber a compreensão dos leitores’.
A directora do PÚBLICO considera que, em matéria de publicidade, o Livro de Estilo do jornal ‘[se] mantém actual em muitos aspectos’, e ‘seguramente (…) em relação ao fundamental’. Defende, no entanto, que em alguns pontos, o documento ‘está desfasado do actual momento de crise’, e refere especificamente o que prevê que ‘a direcção [se] reserva o direito de adiar, por motivos editoriais imprevistos e excepcionais, a inserção de publicidade’. ‘Qual é a direcção’ — comenta — ‘que, num jornal cujas receitas de publicidade caíram 23% nos últimos meses, tomaria uma decisão dessas?’.
Entendo, naturalmente, o apelo de Bárbara Reis à compreensão dos leitores. O jornalismo de qualidade é caro e as receitas publicitárias são indispensáveis. Suponho que muitos compradores do PÚBLICO aceitarão certas concessões à pressão publicitária em nome da preservação do projecto editorial a que deram preferência. Na verdade, são raras as reclamações que me chegam sobre este tema no que respeita ao jornal impresso. É diferente no que toca à edição on line, em relação à qual abundam as queixas sobre o desconforto causado por anúncios mais intrusivos, que dificultam a leitura quando não é intuitivo (e por vezes não é) o modo de os remover.
Mas penso, também, que o debate sobre os limites que não devem ser ultrapassados na cedência às pressões publicitárias — e a capa de 31 de Outubro está já, a meu ver, num terreno movediço — não pode ser evitado. Em nome do respeito que o jornal deve a si próprio e aos seus compradores fiéis. E atrevo-me a fazer o meu próprio apelo, talvez irrealista, à compreensão dos leitores e à reflexão dos decisores do PÚBLICO. Em tempo de crise, com a imprensa de qualidade gravemente ameaçada por dificuldades financeiras, não se justificará pedir um maior esforço de apoio a este jornal a todos os que não querem dispensar a sua leitura, nem ver baixar os seus padrões de exigência?”