Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Liberati

"Estava na piscina do condomínio bebericando meu terceiro dry martini, hic, quando surgiu minha vizinha – aquela que acha que eu tenho cara de balcão de informações. Trazia um calhamaço de jornais, entre os quais se destacava o The New York Times. Vinha com a cara amarrada.


– Vou cancelar meu passaporte e a assinatura do Times! – ela disse, sem dar bom dia.


Não entendi o propósito de tal atitude radical. Vamos por partes, hic. ‘Por que o passaporte?’, eu perguntei.


– É por causa da atitude do governo diante daquela reportagem furreca do Larry Rohter, que derrama injúrias sobre o nosso presidente e tenta afogá-lo num copo de cachaça. E mais: quem foi que botou aquela licitação para comprar copos para bebidas alcoólicas no site do governo na internet, justamente no meio desse porre?


‘Exageraram na dose’, tentei brincar, mas ela continuou:


– Esse pessoal parece que bebe. Expulsar o jornalista transforma um sujeito incompetente numa vítima. Agora já estão rotulando o Brasil de país autoritário, estamos entre aqueles que ferem liberdade de imprensa, imagine!


‘É, não existe nada nesse mundo que não possa ser piorado’, afirmei , hic, com a minha desgastada filosofia de botequim. ‘Mas há sempre uma luz no fim do tonel!’


Ela ignorou minha piadinha e falou algo que calou fundo


– Estou com saudades do Gay Talese!


(Para esclarecer essa manifestação de carinho, é bom salientar que Talese simplesmente é um dos maiores jornalistas do século passado, que juntamente com Tom Wolfe, Norman Mailler (e Truman Capote, por que não?) revolucionou a imprensa americana e criou um novo estilo de jornalismo chamado de new journalism, que ele, no entanto, despreza. Recentemente, lançou um livro onde reúne suas melhores reportagens (Fama e anonimato), que sucedeu um outro sobre o NYTimes (O reino e o poder).


Recentemente, o renomado jornalista, no caderno Idéias do JB, criticou a forma como os seus colegas americanos vêm se comportando em relação à administração Bush e os desastres de sua guerra. Diz que os repórteres não estão sujando os sapatos nas ruas em busca de notícias, ‘andam em rebanhos como um grupo de comadres na capital do país: falando um do outro, comendo nas mãos da Casa Branca’. Reafirma: ‘nós não estamos lá fora, nas ruas, como deveríamos. Não estamos nos misturando com as massas. Estamos trancados entre quarto paredes, assistindo tudo pela tela do computador. Não enxergamos mais a realidade, porque as telas nos cegam. Não estamos ligando os pontos, como se diz, e eu pergunto o motivo. Respondo: porque estamos voltados para dentro, em vez de estarmos apurando a realidade com nossos melhores instintos e energias’.)


Minha vizinha continuou seu raciocínio.


– O tal do Rohter talvez até poderia ser repreendido pelo editor Bill Keller, se a coisa fosse tratada de forma sóbria. O Times é um jornal sério, saberia reconhecer seu erro. Quem sabe teríamos de volta um pedido de desculpas? Afinal, eles tiveram um caso desgastante, aquele do repórter pinóquio Jason Blair. E não é que o danado até lançou um livro de 288 páginas com suas versão do caso: Burning Down My Master’s House: My Life at The New York Times.


Pedi um uísque duplo e lembrei que Ronald Reagan, quando esteve por aqui, nos chamou de bolivianos. E que ninguém averiguou o teor etílico dele.


– Pois é – ela emendou -, Clinton disse que fumou marijuana mas não tragou e depois fez sem-vergonhices com aquela pobre menina… E o Kennedy: dizem que era da pá virada. Não era o Bush que estabelecia uma relação problemática com o copo?


Nem tive tempo de responder. Ela chamou o garçom:


– Me faz uma caipirovska de lima, que eu já estou com delirium tremens."



Ariel Palácios


"Reportagem causou confusão na Argentina", copyright O Estado de São Paulo, 13/05/04


"Muito antes de tornar-se protagonista de polêmicas dentro do território brasileiro, o jornalista Larry Rohter, do New York Times, foi o autor de um punhado de reportagens que causaram muita confusão na Argentina, país no qual o correspondente tem uma de suas bases na América do Sul.


Segundo o Estado apurou, o jornalista passou a última semana na capital argentina. Mas, na terça-feira, teria voltado ao Brasil. No entanto, também existia a possibilidade de que tivesse ido a Miami.


A maior polêmica de Rohter na Argentina foi causada em 2002 por uma reportagem sobre uma suposta tentativa de independência da Patagônia, a região sul do país. Rother afirmava que os habitantes da Patagônia estavam ‘discutindo abertamente (a independência) como solução’.


A matéria teve um impacto explosivo na Argentina, já que a informação carecia de qualquer base real. Rohter citou uma suposta pesquisa na qual 53% dos patagônios desejavam ser uma república independente.


A polêmica foi grande, já que a Patagônia é uma região considerada sensível pelos argentinos por causa da combinação da baixa densidade demográfica com as grande riqueza de petróleo e gás. ONGs de direita e de esquerda acusaram a reportagem do correspondente de ser parte de uma conspiração dos americanos para conquistar a Patagônia.


Os analistas sobre conflitos regionais afirmaram na época que os sentimentos de autonomia dos patagônios eram tão superficiais ou pitorescos como os sentimentos separatistas dos habitantes do sul do Brasil.


No mesmo ano, Rohter publicou uma reportagem indicando que um ‘arrependido’ iraniano, conhecido como a testemunha ‘C’, tinha declarado que Menem havia recebido US$ 10 milhões para encobrir a suposta participação do Irã no atentado contra a associação beneficente judaica AMIA, ocorrido em 1994.


Neste caso, Rohter apresentou a notícia como se fosse um furo. Na verdade, a informação havia saído anos antes nos jornais El Clarín e Página 12.


Daniel Santoro, presidente do Fórum de Jornalismo Argentino (FOPEA), uma organização de jornalistas dedicada à defesa da liberdade e transparência da imprensa, criticou a expulsão de Rohter. ‘é uma pena, já que parecia que o governo do Brasil tinha outros caminhos. Foi uma medida extrema.’


Disparate – Uma das jornalistas mais famosas do país, Olga Wornat, disse ao Estado que a medida do governo Lula só pode ser qualificada como ‘um disparate absoluto, somente comparável à política de liberdade da imprensa de países com Cuba ou China, ou os tempos recentes do México governado pelo PRI’. Para ela, é incompreensível em um país democrático como o Brasil.


Um jornalista em Buenos Aires que conhece Rohter e pediu reserva do nome disse que o correspondente americano é um ‘cara simpático’, um veterano.


‘Mas, duas ou três vezes, por ano escreve uma besteirada do tamanho de um bonde’.


O jornalista disse que a decisão do governo Lula em expulsar Rohter é tão desprezível quanto o tratamento que o governo dos EUA deram aos jornalistas no Iraque."



Luiz Orlando Carneiro


"Lei prevê ‘inconveniência’", copyright Jornal do Brasil, 13/05/04


"O governo Lula, ao determinar a suspensão do visto temporário do correspondente do New York Times, Larry Rohter, baseou-se exclusivamente num artigo da Lei 6815/80 (Estatuto do Estrangeiro). De acordo com o art. 26 do estatuto, o visto concedido pela autoridade consular é ‘mera expectativa de direito, podendo a entrada, a estada ou registro do estrangeiro ser obstado’. O motivo para o cancelamento do visto, segundo a lei, pode ser a simples ‘inconveniência de sua presença no território nacional, a critério do Ministério da Justiça’.


Também são listados os casos que impedem a concessão de qualquer tipo de visto: menor de 18 anos desacompanhado do responsável legal ou sem a sua autorização expressa; estrangeiro considerado ‘nocivo à ordem pública ou aos interesses nacionais’; pessoa anteriormente expulsa do país; condenado ou processado em outro país por crime doloso, passível de extradição segundo a lei brasileira; quem não satisfaz as condições de saúde estabelecidas pelo Ministério da Saúde.


Larry Rohter não foi, tecnicamente, expulso do Brasil. O governo usou do arbítrio que lhe dá a lei de considerar inconveniente a validade do visto temporário de trabalho concedido ao correspondente do New York Times no Rio. Sem visto, o jornalista teria de deixar o país, com despesas de viagem pagas pelo empregador.


O artigo 13 do estatuto prevê que o visto temporário (diferentemente do de turista ou do permanente) é concedido ao estrangeiro que pretenda vir ao Brasil em seis casos: viagem cultural ou missão de estudos; viagem de negócios; na condição de artista ou desportista; estudante; cientista, professor, técnico ou profissional de outra categoria, sob regime de contrato ou a serviço do governo brasileiro; na condição de correspondente de jornal, revista, rádio, televisão ou agência noticiosa.


A decisão extrema do Executivo, segundo advogados e magistrados, tem fundamento no Estatuto do Estrangeiro. Como afirmaram o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Roberto Busato, e o presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, Baldino Maciel, o presidente deveria, contudo, ter usado as medidas judiciais que levariam o jornalista americano a responder a ações civil e penal para reparar as ofensas.


Qualquer crime praticado no Brasil é alcançado pela lei brasileira. Larry Rohter poderia ser processado por difamação ou injúria, com base na Lei de Imprensa (5250/67). A pena para difamação é de detenção de três a 18 meses; para injúria, a lei prevê pena de um mês a um ano. O presidente ofendido poderia também entrar com ação indenizatória contra o correspondente, por dano moral."




Marco Antonio Rocha


"Todos os sabujos do presidente", copyright O Estado de S. Paulo, 17/05/04


"Ao surgir a notícia, na noitinha de sexta, do desfecho do affair Lula-Rohter, a opinião mais espontânea foi: ‘Vitória do Lula.’


Mas, que vitória? E, para o Brasil, qual vitória?


Uma trapalhada totalmente desnecessária prejudicou enormemente a imagem do governo e, não fossem os bons ofícios do ministro Thomas Bastos, a imagem da jovem democracia brasileira é que teria sido prejudicada, tornando o estrago ainda maior. Durante uma semana, uma polêmica produzida por pessoas despreparadas para as funções que ocupam criou mais uma atribulação para um governo que iniciou o ano sob os melhores auspícios, inclusive na área econômica. Por isso, é necessário um balanço da tropelia insensata, até como advertência.


Atribulações não têm faltado. Duas das maiores conspurcam dois ativos patrimoniais (e morais) – dois alicerces – do Partido dos Trabalhadores: o da incorruptibilidade e o de campeão dos direitos civis.


O primeiro já vinha sendo arranhado pela investigação não terminada do assassinato de Celso Daniel, mas, depois do tratamento dado por Lula ao caso Waldomiro-Zé Dirceu, uma agência internacional de avaliação de risco diria que esse ativo nunca mais terá possibilidade de galgar o investment grade.


O segundo – o ativo de campeão dos direitos civis – o próprio Lula encarregou-se de tisnar, na semana passada, ao ver na reportagem canhestra, pessimamente fundamentada, motivo para cassação do visto do autor.


‘Como se destrói um símbolo?’ – perguntava Frei Betto no jornal O Globo, numa tola diatribe contra o NYT. Uma das mais eficientes maneiras é expulsando jornalistas, não é? E quase que Lula embarcou nela…


A pergunta que petistas perplexos fizeram, e talvez ainda façam, é quem teve a infeliz idéia de sugerir ao presidente medida de tamanha insensatez? Ou ainda, quem não teve coragem ou força para desaconselhá-lo?


As atitudes, reações e declarações do próprio Lula, depois do episódio, mostram que não é necessário responder essas indagações. Sendo ele o que é – e o que o jornalista do NY Times talvez não soubesse, por não conhecê-lo bem -, ou seja, um homem extremamente vaidoso, cheio de si, de um lado, e cheio, por outro lado, de preconceitos contra quem quer que tenha estudado e ostente uma formação intelectual esmerada, só podia mesmo partir para a ignorância, como se diz.


Lula não precisou dos conselhos de ninguém. Agiu por conta própria – ‘aceito todas as conseqüências’ e, quanto às críticas, ‘não passam de corporativismo da imprensa’ foram suas palavras.


Mas, recebeu, certamente, o incentivo e os aplausos dos que almejam fortalecer-se politicamente junto ao ‘chefe’, para poder esmagar os inimigos do ‘círculo’ interno. Um fenômeno que nos remete às histórias que líamos sobre a entourage de Stalin.


Um disciplinado apparatchik, André Singer, cumprindo sua função de porta-voz da tolice, apressou-se a assinar um texto, publicado na Folha de S. Paulo, digno, na forma, de Joseph Goebbels: ‘A liberdade de imprensa não pode servir de pretexto para ser leniente com quem difama, injuria e calunia’ – palavras que o chefe da propaganda de Hitler empregava em seus programas de rádio, para instigar o povo alemão contra a imprensa – antes da tomada do poder, porque, depois, já não houve mais imprensa digna deste nome. No conteúdo, se aproximava de Torquemada: ‘A reportagem foi produzida por um estrangeiro e publicada fora do Brasil, longe, portanto, da competência da Justiça brasileira. Sendo assim, a alternativa compatível com a gravidade do caso foi a de suspender o visto do correspondente para restaurar um ambiente de responsabilidade e respeito no trato dos assuntos públicos brasileiros.’


Na parte que grifamos está a ameaça do Torquemada aos jornalistas em geral, brasileiros e estrangeiros. Na frase inicial está a tolice, pois nenhum estrangeiro que trabalhe aqui e nenhuma empresa estrangeira, embora possam estar ‘longe’ da Justiça brasileira, não estão fora da sua alçada, já que há meios e modos de fazer-se cumprir no exterior um julgamento exarado aqui.


Outro denodado ‘conselheiro’, o gauleiter para a área da comunicação, que, com sua barbicha, possivelmente se considera um Rasputin brasileiro, a manejar dos bastidores os cordéis do Poder, atreveu-se a tentar convencer os jornalistas, com argumentos tão tortuosos quanto o velho Caminho do Mar, de que o presidente fez muito bem em tentar expulsar o colega americano do País e que a reportagem era ofensiva a Lula e ao Brasil: ‘L´État c´est moi!’ – ter-lhe-ia dito o presidente Lula? Acho que não…


Do ministro José Dirceu, não se poderia esperar nada mais do que ressentimento contra a imprensa, igual ao que manifesta em relação ao Ministério Público, cada vez que é contrariado ou contraditado.


Quem mais? Ah, sim… ‘Uma coisa é liberdade total de crítica, como há (sic). Outra coisa é ofender a honra nacional na pessoa do chefe de Estado com uma matéria totalmente inventada e caluniosa. A pessoa não preenche as condições de continuar exercendo sua função de correspondente.’


Grifamos a palavra total porque ficou claro que a liberdade de crítica aceita pelo governo não é total. Tem de ser imposta a ele. E quem foi que disse isso? O ministro do Exterior, Celso Amorim, que tomou também a si a pretensão de decidir quem é que, no jornalismo, ‘preenche as condições de continuar exercendo a sua função’, usurpando assim o papel dos editores-chefe das redações.


Esses são os do ‘núcleo duro’. Duro de quê? De cabeça, será? Deve ser. Mas, mais que isso, candidatos a doutor Strangelove, com a diferença que, a cada vicissitude, levantam o braço esquerdo, em vez do direito.


Quem mais? Quem mais aplaudiu? Ah, sim, num primeiro momento, o senador José Sarney, que depois parece ter-se arrependido e tentou convencer Lula a desfazer o malfeito; o ex-presidente Itamar, que veio de Roma e apressou-se a elogiar a medida; e, pasmem, Armando Falcão (alguém se lembra dele?), o homem do famoso ‘nada a declarar’, ministro da Justiça (sic) que nada declarou, nem tinha nada a declarar, quando, durante sua gestão na pasta, em 1975, o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado. Saiu do olvido para louvar a truculência daquele que, quatro anos depois, fundaria o Partido dos Trabalhadores.


Dados esses fatos, frases e arrogâncias, pode-se dizer que a intervenção do ministro Bastos foi salvadora: deu a Lula a saída mais honrosa que era possível, não só do imbroglio, mas das garras do ‘núcleo duro’."