Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Mais espaço para a produção local

A televisão, mais do que um objeto de entretenimento, deve ser encarada como um meio de comunicação, na concepção mais ampla do termo, e de formação cultural do indivíduo. Trata-se de um substancial agente formador do acervo cultural do cidadão, bem como de construção da visão da sociedade em que está inserido. Visto por esse ângulo, é essencial que a mídia televisiva brasileira reflita a cultura em que está ambientado o telespectador, sendo nesse contexto que se insere o problema da localização da programação televisiva brasileira, ou o espaço do conteúdo local na tela.

Compreende-se ser mais operacional trabalhar com a idéia de TV local do que regional, pois o regional, não raro, obedece a definições geopolíticas estipuladas pelas autoridades centrais. Assim, o regional pode ser o simples agrupamento de vários locais, a partir de critérios pouco embasados na vida das comunidades. Já o Estado corresponde a uma segunda ordem de criação, fruto, muitas vezes, de imposições políticas e econômicas, reunindo diversas regiões. Sendo assim, os Estados nem sempre configuram identidades fortes, que os tornem nações, no enfoque sócio-cultural, daí o motivo para tantos separatismos, movimentos que se espraiaram nas décadas finais do século 20, especialmente na Europa.

Estereótipos e falsas interpretações

Nesse sentido, as grandes redes de TV aberta nacionais deveriam ser vistas como janelas, que se abririam para que os mais variados locais do país entrassem em contato com outros e, conseqüentemente, com culturas diferentes daquelas cultivadas. Esse intercâmbio permitiria a integração do país e até a reciclagem das culturas locais. Contudo, os interesses mercadológicos de curto prazo tendem a impedir essa circulação simbólica. Em grande medida, amazonenses, catarinenses e mato-grossenses conhecem a Bahia, por exemplo, através da representação que as indústrias culturais fazem de sua cultura, notadamente por meio de telenovelas. Esse modelo é justificável quando a representação é o mais verossímil possível e todas as localidades participam da arena de representação.

O problema desse tipo da produção nacional é que, apesar de representar uma cultura local, geralmente o grau de distorção é muito grande. As novelas, em geral, são realizadas pelas centrais produtoras do Rio de Janeiro e de São Paulo. Por mais que se esmerem na qualidade da realização, para uma reprodução fiel ao ambiente e à cultura que pretende retratar, acabam insistindo em estereótipos e outras facilidades representacionais, reforçando abismos identitários e falsas interpretações.

Espaço reduzido para afiliadas

Ao mesmo tempo, a discussão sobre a localização televisiva é bem mais ampla do que a produção ficcional, perpassando também o jornalismo. Afinal, é de se acreditar que notícias de âmbito local mereceriam mais destaque do que as internacionais, nacionais ou de localidades distantes do receptor. Porém, qualquer observação, mesmo não sistematizada, atesta como o jornalismo local possui pouco espaço nas redes abertas, apesar de sua relevância.

Acontece que as emissoras locais geralmente são afiliadas de grandes redes nacionais de televisão, que abrem pouco espaço para geração de conteúdo próprio. Em meio a isso, mais um traço negativo: é comum os espaços locais nas grades de programação serem ocupados pelo proselitismo de tele-evangelizadores. Isso sem mencionar programas de baixíssima qualidade, produzidos de forma terceirizada. Se abre espaço reduzido em sua grade para suas afiliadas, a Globo, pelo menos, não veicula esse tipo de produto de baixa qualidade, o que não a exime de outros desvios, característicos das Organizações Roberto Marinho e suas parceiras.

Maior identificação do espectador

Além das afiliadas das redes contribuírem muito aquém para a plena fruição das identidades locais e sua atualização em bases não só globais, há outra ordem de efeito acarretado. Ao serem priorizados produtos televisuais produzidos em outras regiões, geralmente no sudeste do Brasil, não se deixa apenas de fomentar o desenvolvimento cultural do local, mas também de promover o incremento econômico que tal realização audiovisual traria. Há uma perda cultural e do potencial realizador de todo o país, cuja riqueza e diversidade poderiam gerar vantagens sistêmicas para competir, inclusive, no plano externo.

Em meio a isso, deve-se dizer que tem havido alguma expansão do espaço local na TV aberta – a partir da década de 90 do século 20 –, até como uma alternativa ao conteúdo prioritariamente globalizado dos canais pagos. Mas isso ainda é muito pouco e a tendência também não evoluiu no nível projetado, especialmente devido à baixa penetração que a televisão por assinatura conquistou, não representando a força de concorrência imaginada num primeiro momento. Todavia, a experiência tem comprovado que o produto local produz maior identificação do telespectador com a emissora e também com os anunciantes do horário.

Uma aldeialização cultural

Da mesma forma, há alguma elevação da veiculação nacional de produções locais, sobretudo na Globo, o que é mais identificado, hoje, no Globo repórter, assim como no Fantástico e em telejornais. A Central da periferia parte em busca de especificidades locais, não obstante obedeça a uma produção nacional, o que não exclui parcerias com produtoras das cidades que percorre. Essa fórmula tem sido muito festejada, mas igualmente tem pontos fracos: projetada no Rio de Janeiro, há distorções na representação das culturas locais, o que tem sido a regra no trabalho das indústrias culturais, as quais costumam pasteurizar o produto televisivo para facilitar seu consumo por públicos heterogêneos.

O processo de localização da programação televisiva brasileira deve atender às peculiaridades das diversas realidades do país, cuja dimensão continental é uma importante variável. Ao lado da globalização contemporânea (reformatada), o mundo necessita de uma aldeialização cultural, de forma a que as comunidades tenham seus laços simbólicos fortalecidos, para, a partir daí, interagirem com outras culturas. É uma questão de relação, portanto, afastando qualquer pretensão de fechamento cultural, inconcebível pelos resultados negativos que traz, já que os elementos e referenciais relevantes para a sociabilidade, orientação e posicionamento econômico do ser humano e da sociedade em geral advêm de vários lugares, no tempo e no espaço.

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Respectivamente, professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos e doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA; graduando em Comunicação Social – Jornalismo pela Unisinos