Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Manifestações populares e democracia

Carlos é jornalista e trabalha em uma emissora de TV da chamada ‘grande mídia’ de seu país, onde apresenta e comenta as notícias de um telejornal noturno.

Carlos apresenta uma notícia sobre uma grande manifestação na capital de um país sul-americano. Os manifestantes (que são muitos, mas muitos mesmo!) vão até o parlamento exigindo de seus representantes que aprovem uma nova Constituição para seu país – deles, os manifestantes, e dos parlamentares. Estes, temendo uma invasão ou ‘algo pior’, saem protegidos pelos policiais – dos quais o país também é e os quais têm o dever de zelar pela segurança dos cidadãos (manifestantes ou não, parlamentares ou não).

No entanto, há um confronto entre policiais e manifestantes. A matéria do jornal de Carlos esclarece menos o telespectador do que eu já fiz no parágrafo anterior, dando destaque apenas ao confronto e à saída dos parlamentares. Ao final, a imagem volta para Carlos, que mira a câmera, olhando o telespectador de frente e diz, convicto: ‘Isto é um atentado à democracia’ – referindo-se ao ato dos manifestantes.

‘Sem motivos prévios’

Carlos completa seu raciocínio relacionando aquele fato com outro, ocorrido ano passado na capital de seu país, dos telespectadores e dos manifestantes sem-terra, aos quais agora ele se refere, destacando as portas e caixas-eletrônicos quebrados, além de mais um confronto entre policiais e, desta vez, sem-terras. Para Carlos, outro exemplo de ‘atentado contra a democracia’. Nas duas oportunidades, Carlos não tratou dos motivos das manifestações: no primeiro caso, do porquê querem uma nova Constituição, ou por que não estão satisfeitos com a atual; no segundo caso, da questão fundiária no país de Carlos.

Assistindo Carlos, parecem ser aquelas atitudes irracionais, pois ‘sem ter motivos prévios’, só pode ter ‘dado a louca’ naquele monte de gente, nos dois países, para saírem assim: gritando, ameaçando e quebrando tudo e todos – conforme Carlos. Sinceramente, eu como telespectador, não esperava nada de Carlos além disso.

Os simpatizantes do presidente

Vejo Carlos há muitos anos na TV. Carlos costuma utilizar o termo simpatizantes para designar os milhões de cidadãos eleitores que defendem seu voto e seus interesses nestas manifestações nas capitais de uns três países ao redor do de Carlos… e meu – na certa, para passar a impressão de que se trata de uma minoria que atenta contra a democracia.

Mas não é só Carlos que age assim. Outros tantos colegas seus que trabalham em outras emissoras – das quais, em algumas Carlos já trabalhou – também utilizam o mesmo termo, entre outros.

Não me lembro de Carlos, nem desses seus colegas, encarando a câmera e proferindo a mesma frase quando um presidente de um dos três países sofreu um golpe de Estado (fracassado logo em seguida). Vai ver é porque este presidente não tinha eleitores, apenas simpatizantes… né, Carlos?

Sem comentários

Ai, ai… Carlos me faz rir! Na semana anterior foi noticiado por Carlos que num importante país, bem ao norte, testaram uma nova arma não-letal. Trata-se de uma espécie de placa que emite raios de calor, fazendo com que quem esteja à sua frente sinta a sensação de estar queimando, assim como num microondas. E sabem como era o teste?

Um grupo de soldados mirava e acionava a arma contra jornalistas voluntários que simulavam uma… m-a-n-i-f-e-s-t-a-ç-ã-o!!!

Carlos podia ter encarado a câmera e dito, indignado e convicto: ‘Isto é um ensaio para um atentado contra a democracia…’ Mas Carlos não disse nada.

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Como no sítio do jornal do Carlos (Jornal do SBT – noite) não são publicadas as notícias, deixo outras para o leitor informar-se melhor:

** Costa, Antonio Luiz Monteiro Coelho da. ‘O povo segue na moda‘, CartaCapital, ano XIII, dez. 2006

** Canuto, Júlio. ‘Manifestantes ou baderneiros?‘, Pula o Muro, 26/07/2006

** Westhead, James. ‘Militares dos EUA exibem arma com raio de calor‘, BBC Brasil, 25/01/2007:

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Sociólogo, São Paulo, SP