Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Moleques, sim, com muito orgulho

Rápida definição de jornalista: alguém apressado e que pergunta. Apressado porque tem um dead-line batendo na porta, uma edição de rádio ou de telejornal para ir ao ar daqui a alguns minutos, um fechamento de jornal a cumprir, um ‘pescoção’ de revista a enfrentar, um concorrente de real-time ameaçando o leite das crianças. Para os que não são jornalistas e não têm obrigação de conhecer esses termos, um breve glossário: dead-line (ou ‘linha mortal’) é o implacável horário do fechamento das edições. ‘Pescoção’ é a noite em claro que alguns jornalistas são obrigados a virar para finalizar a publicação que descerá às rotativas. E real-time, ou ‘tempo real’, é o trabalho das agências noticiosas que procuram divulgar os fatos no momento em que ocorrem. Além disso, jornalista é alguém que pergunta, e pergunta porque perguntar é da natureza dos jornalistas.

Mas parece que o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, não foi informado disso. Ao acusar os jornalistas de má-fé e mau-caratismo, no final da coletiva do dia 22 passado, até que não andou, digamos assim, tão longe da verdade. Existem, sim, jornalistas que agem com má-fé e jornalistas de péssimo caráter. Mas são alguns. Trazer a generalização para os jornalistas que o entrevistavam foi uma tremenda pisada de bola. E sabe por quê? Então, vamos fazer uma rápida dissecação das partes da entrevista em que o ministro perdeu a tranqüilidade, tentou dar uma aula sobre o que pode e o que não pode ser perguntado e, de quebra, distribuiu adjetivos pesados e gratuitos a nós, moleques da notícia.

‘O modelo econômico é perverso?’ pode ser considerada tudo, menos uma pergunta que contenha o germe da má-fé, como acusou o ministro, já pressupondo que os jornalistas iriam colar sua resposta à do presidente da OAB, para quem o modelo econômico é perverso, sim. ‘Isso chama-se má-fé’, atirou Dirceu, diante da pergunta, errando o alvo. Se o presidente da OAB disser que o modelo econômico é perverso e o ministro-chefe da Casa Civil igualmente o admitir, é acaciano afirmar que ambos concordam que o modelo econômico é perverso, ora essa. Se existe má-fé, ela está na própria busca, pelo ministro, da antecipação da edição que não o agradaria, embora correta. Jornalistas não são pagos apenas para transcrever ipsis litteris o que ouvem. Têm, sim, o direito – e o dever – de estabelecer comparações, apontar concordâncias e discordâncias e, desta forma, oferecer um quadro de referências ao seu público.

Indagado se estivera em Brasília com o empresário Rogério Buratti, acusado de fraudes em administrações comandadas pelo PT, Dirceu condenou a pergunta – ‘É isso que não pode’ – antes mesmo de respondê-la. ‘Mas a má-fé e o mau-caratismo levam a esse tipo de pergunta’, acrescentou. E acrescentou errado, porque, no geral, jornalistas, além de poderem perguntar, e até são pagos para isso, não agem por má-fé nem por mau caratismo por fazê-lo. Se fizessem apenas perguntas a gosto dos entrevistados, aí sim, talvez coubesse, e poderiam ser chamados de tudo, menos de jornalistas. O ministro avançou mais: ‘Tenho o direito de opinar. Você faz a pergunta e eu respondo’ E insistiu: ‘É má-fé, é mau caratismo’.

Explosão eloqüente

Quanto ao direito de opinar, essa é uma característica intrínseca de quem vive num regime democrático. Igualmente é correto (e redundante) afirmar que alguém tem o direito de perguntar e alguém, de responder. Já a acusação de má-fé e mau caratismo sobrou, além de ser gratuita e perigosa. Cidadão algum – do presidente da República ao camelô da esquina – tem o direito de acusar alguém de agir por má fé ou de ser mau caráter sem apresentar provas. No caso do ministro, supor que sua resposta a uma pergunta vá ser editada assim ou assado e, a partir dessa suposição, acusar o perguntador de agir de má fé ou de ser mau caráter é leviandade e precipitação. Seria o mesmo que chamar o comprador de uma faca de assassino.

Já no finzinho da discussão – pois aquilo já não podia mais ser chamado de entrevista –, ao ser perguntado sobre as tentativas da Casa Civil e do PT de impedirem a divulgação de um documento mostrando que Buratti trabalharia com ele, o ministro respondeu, desconhecendo a pergunta: ‘O que sei é que o Brasil tem lei e tem alguns setores da imprensa que se consideram acima da lei’. E aí talvez tenha produzido uma frase aproveitável, apesar de diversionista. Pois é verdade, sim, que o Brasil é um país que tem lei, assim como existem setores da imprensa que se consideram acima da lei. Faltou dizer apenas que quem não gosta de responder a perguntas que buscam esclarecer dúvidas de leitores, ouvintes e telespectadores não deveria ocupar função pública. E quando se dispõe a conceder uma coletiva deve estar preparado para ouvir perguntas – agradáveis ou não – e respondê-las. Ou não conceder a entrevista. Além disso, perguntas de jornalistas não costumam vir acolchoadas pela maciez de cuidadosos intróitos. Com um dead-line nos calcanhares, jornalistas costumam perguntar quanto é dois mais dois e esperam apenas ouvir que é quatro, para terem tempo de correr às redações e divulgarem a resposta. Simples assim. Dois exemplos:

Diante da pergunta seca do repórter Ernesto Varela: ‘O senhor é corrupto?’, Maluf prontamente respondeu: ‘Não’. Sônia Carneiro quis saber se Collor estava com Aids. ‘Não’, foi a resposta. Da mesma forma, diante da pergunta: ‘O modelo econômico é perverso?’, o ministro tinha todo o direito de responder: ‘Não’, o assunto estaria encerrado e ele nem precisaria ensinar aos repórteres o que podem ou não podem perguntar. Nem tentar encontrar má-fé e mau-caratismo na pergunta. Sua reação explosiva foi bastante eloqüente, e abriu margem à suposição de que aí tem. Na próxima oportunidade, mesmo que sejamos novamente chamados de moleques, é bom algum coleguinha perguntar outra vez, pra ver se existe algo mais além do fantasma de Waldomiro. Afinal, nós, jornalistas, somos mesmo moleques. Um bando de moleques de recados das notícias.

Jornalista, pesquisador, professor da UnB, documentarista, autor de A noite das reformas, O salto sem trapézio, Vermelho, um pessoal garantido, Caprichoso: a Terra é azul e Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês. Este artigo é parte do projeto acadêmico Telejornalismo em Close (http://caid.sites.uol.com.br), coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para paulojosecunha@uol.com.br