As labaredas da perspectiva visionária do filósofo e educador canadense Marshall McLuhan (1911-1980) sobre a influência dos meios de comunicação na sociedade transformaram-se, de um tempo para cá, em um incêndio devastador. A ‘era da informação’ preconizada pelo teórico aviva na sociedade pós-moderna a era da narcose. Narciso, majestoso e belo, vive intensamente dentro de nós. Incorporamos o mito grego quando nos tornamos hipnotizados pela imagem perfeita do outro na televisão. O outro, o desconhecido, toma forma de um espelho para que seja possível adaptarmos uma de nossas extensões.
Tudo é possível em razão do efeito narcótico dos meios de comunicação de massa, em maior escala a TV. O aparelho de tela quadrada brilha, e nossos olhos ficam irradiados pelas cores e movimentos. E nossos ouvidos, invadidos pelo som cada vez mais surround e vibrante. O cineasta Godfrey Reggio, diretor da trilogia Qatsi, já tentou mensurar o poder da sedução da TV. No curta-metragem Evidence, a expressão facial daquele grupo de crianças, aparentemente doentes mentais e autistas, demonstra o entorpecimento provocado pelas explosivas cores dos desenhos animados. A TV substituiu as babysitters?
A semente da narcose da TV germina na sociedade pós-moderna e a cada momento novas árvores frutíferas crescem. O ser humano – eu, você, nós – alimenta-se desses frutos recém-brotados, seja para se entreter, para integrar outra realidade ou mesmo para viver em um paraíso de ilusões. Há gente que deixa de ir a uma festa de família para não perder o último capítulo da novela das oito.
Escravos da pós-modernidade
Justifica-se o porquê da atração infalível das pessoas pelos atuais programas de TV. O conteúdo é repetitivo, a trama das novelas muda pouco – se não é em São Paulo, é no Rio de Janeiro. A fórmula mágica permanece no mesmo patamar para garantir a audiência. Ainda estão ali os elementos primordiais, o glamour, os belos rostos, o corpo esbelto, a sacanagem. E nós mesmos passamos às gerações que estão por vir o hábito de ingerir o conteúdo imagético e sonoro provenientes da tela quadrada.
Sara Godsford, personagem-chave do indigesto drama Réquiem para um sonho, filme dirigido por Darren Aronofsky e lançado em 2000, exemplifica o ser humano consumido pela programação da TV. A mulher quer perder peso para entrar num vestido e assim poder participar de um programa de calouros apresentado pelo ídolo, um bonitão de meia-idade. E Sara sonha em ser chamada para receber um abraço caloroso daquele homem que tanto admira e ainda receber aplausos da feliz platéia ‘Sara! Sara!’ A televisão, diante do penoso dia-a-dia daquela solitária dona-de-casa, transforma-se num fator irrecusável para seu imediato escapismo.
Vive-se a era da tela quadrada, do LCD, do 46 polegadas full HD e da futilidade dos programecos que se alastram pelos canais. Missão quase impossível encontrar conteúdos ‘cabeça’ na enxurrada de penosos. E por mais que se tente, a procura é em vão; a maior parte dos telespectadores prostra a audiência na segunda escolha, talvez pela facilidade de degustação e do frívolo bloqueio à contestação. Para rememorar McLuhan, somos inegáveis ‘amantes dos gadgets‘, contínuos escravos das tecnologias da pós-modernidade.
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Jornalista, professor em faculdades e unidades do Senac, pesquisador de cinema, pós-graduando em Artes Visuais e Intermeios na Unicamp, Catanduva, SP