Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Notas sobre liderança e arrogância

A arrogância pode ser fruto da liderança ou uma liderança pode até decorrer da arrogância, o que é mais raro, principalmente em solo brasileiro, onde, segundo Sérgio Buarque de Holanda, a cultura consagrou ‘o homem cordial’ como padrão de comportamento (em Raízes do Brasil e Extremo-Oeste, narra-se como os bandeirantes desbravaram estes rincões miscigenando-se com índias, agregando castelhanos e só não chegando ao Pacífico porque foram detidos pela Cordilheira). Vide o progresso de Lula a partir do momento em que substituiu a imagem do sindicalista raivoso pela de estadista pacificador. ‘Mas, Alckmin…’, ponderava ele, sereno, até afetuoso, segurando o braço do concorrente no debate da Globo. Dois dias depois lá estavam Bonner e Bernardes anunciando sua vitória como se o futuro dos trigêmeos não estivesse mais garantido.

Schumacher é um exemplo de sucesso derivado, em parte, de um estilo de ser e de guiar – arrogantes. Autoridades julgam ter uma liderança imanente; talvez por isso ajam de forma tão altiva. Uma delas deu exemplo de ignorância nos dois sentidos em coletiva recente, (tanto no da ausência de instrução quanto no de modos): uma repórter venezuelana indagou se entenderia sua pergunta em espanhol e o soberbo respondeu: ‘Entendo bem a minha língua’. Sem preparo e ainda indelicado com a moça.

Reflexo do cidadão

Mas o descaso com a língua dos vizinhos grassa também na mídia esportiva de forma pitoresca, pois há neste meio um esforço corriqueiro por ostentar cultura, pronunciando com esmero os nomes dos jogadores de origem européia. Só que quando se trata de um latino-americano, Têves vira Téves, Mascherano vira Masquerano. Quando não pronunciam Angel (Ânrel) como no inglês (Êndgel). Na transmissão da Copa, gastaram vários minutos dando explicações sobre as muitas maneiras de se falar o nome de um jogador francês naturalizado alemão. Mas durante um jogo do River Plate veio a informação, de surpresa, de que o apelido do goleiro Lux era ‘poroto’. Silêncio no ar.

A anglofilia é irrestrita. Estava certo Décio Pignatari em dizer que quem não produz tecnologia não produz linguagem. Mas nos esportes, o futebol de areia, inventado no Brasil, tem sido largamente chamado de ‘beach soccer’. E, pequeno avanço, narradores de tevê já chamam o ‘tie-break’ do vôlei de ‘set-desempate’. Mas relutam em nomear o ‘match point’ de ‘ponto do jogo’, como fazem, dignamente, os espanhóis, que não têm preguiça de traduzir expressões estrangeiras.

O estadunidense, por seu turno, tem tanto orgulho patriótico, tanta arrogância herdada da liderança prolongada em vários níveis, que reage às hispanidades que ameaçam seu idioma com um desdenhoso ‘what?’ Não se sabe se o cidadão se inspira num Estado que já declarou, para perplexidade mundial, ser o senhor do espaço sideral, ou o Estado é reflexo do cidadão; certo é que nos EUA qualquer jornal, jornalista ou presidente de sindicato de aeroviário desafia porque se acha superior a um chefe de Estado ou sistema judiciário de país de ‘terceiro mundo’. Mas estamos no terreno dos estereótipos, que abolem as complexidades.

Humor que migra

Foi só elogiar A grande família para o humor migrar todo para Jorge Horácio by Night (Minha nada mole vida). Criança só é engraçada para os pais. Por isso os personagens infantis de novelas são sempre muito chatos (mais do que costumam ser na vida real). Os roteiristas bolaram o baile de debutante no Paivense com a atriz Carla Dias que, a despeito de estar na puberdade, deixou pueril toda a família (o oposto do que acontecera na semana anterior, com a participação da sensual Carla Marins).

Já Hélio, no Jorge Horácio, é uma criança atípica: seu texto é de adulto, o que o torna visivelmente árduo para seu protagonista. Mas o programa, que agrada basicamente à classe média-média, remediada, psicanalisada, dos intelectuais de boteco do Rio ou de padaria de São Paulo, às leitoras de revistas mensais e leitores de revistas semanais, assinantes de canais a cabo e toda uma tipologia euroamericanizada cujo patrimônio foi carcomido por impostos no governo Lula, teve boa performance na estorinha da viagem do colunista e sua família para Portugal, e na gozação bem-sucedida aos nossos patrícios, porque o humor não comporta o politicamente correto.

Resta saber como a concorrente Band, que tem contrato de parceria com a RTP e está inclusive gravando em Lisboa sua novela Paixões proibidas, reagiu a esta provocação, que teve apoteose ideológica: sugeriu que nosso antigo colonizador nos doasse divisas porque foi um explorador voraz das riquezas brasileiras. Mas, como nos episódios em que integrantes do movimento negro exigem refeições grátis em restaurantes por conta da dívida histórica pela escravidão, esta piada não teve a menor graça.

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Jornalista, professora da Ufes, pós-doutoranda da USP, pesquisadora do CNPq e integrante da Rede Nacional de Observatórios da Imprensa (Renoi)