Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Novela, seu nome é mulher

A novela televisiva é feminina tal como o futebol da telinha é masculino. De maneira geral, as mulheres, mais que assisti-las, mergulham nesse mundo das tramas e conflitos criados pelos seus autores. Já as ouvi interagindo com a telinha, falando coisas do tipo “como ela é burra” e “não conte isso”. Mas é necessário esclarecer que medindo essas preferências não existe nada absoluto e cada caso é um caso. Considerando apenas estes dois gêneros, minha mulher, por exemplo, é uma novelista incrementada em torno de 97%, sobrando uns 3% como futebolista – esse resíduo por conta da agitação na época da Copa do Mundo e sua tolerância com os dois homens da casa. Já minha preferência medida pelo gostômetro deve andar por uns 80% de futebol por uns 20% de novelas.

A novela é tão longa e repetitiva que basta acompanhar as chamadas de intervalo para saber “a quanto andas”. Gosto de procurar sinais deixados ao longo da trama pelo autor para tentar adivinhar o futuro dos personagens. Faço isto tantas vezes que minha esposa já está ficando craque no costume. E quando minha mulher por algum motivo sai de frente da televisão, ai de quem trocar o canal! “Não mexa aí que estou ouvindo!” grita. Aliás, quando existe uma disputa direta de preferência pelo horário, o futebol ganha por machismo, seja suprimindo um capítulo de novela ou mesmo encurtando-a, como acontece nas quartas.

A alternância da rotina

No fundo, novela e futebol têm a mesma estrutura: são cíclicos e periódicos, sendo que a novela dura em média nove meses. Já o campeonato é dividido em capítulos ou jogos de turno e returno, também de meses de duração. Ambos não têm fim porque quando se encerra um ciclo, começa outro. Portanto, nem o final é definitivo porque logo começa um novo sofrimento. Alguns atores são trocados na virada, mas a base continua. No caso das novelas, os times pertencem a núcleos. Tanto a mocinha e mocinho se revezam no “fica não fica” ao longo da trama como existe um perde e ganha dos times no campeonato. Este movimento é típico do jogo porque os dois times em campo ficam indo e vindo em busca do êxtase que é o gol. Em ambos existe o relativo final feliz com o ganho do campeonato ou a união definitiva do casal central. E não podemos nos esquecer do contraponto representado pelo vilão que tal como nas novelas, no futebol é representado pelo time adversário ou o próprio juiz. Porém, o maior vilão não é tirado das novelas e sim, do futebol: são as gangues baderneiras que depredam e brigam resultando até em mortes.

A novela – por definição – é um conjunto de clichês arrumados como um quebra-cabeças pelo autor. Por exemplo, a disputa de pai e filho (ou mãe e filha) por amor comum. Ou a ascensão financeira de personagem que no início estava na pior e os casamentos desfeitos no altar que chegam a irritar pela constante repetição. Quem não identifica o golpe da barriga que uma personagem recorre quando quer ferrar o mocinho, as tiradas anti-preconceituosas como forma para educar os desavisados e por aí vai. E ainda tem a novidade contemporânea, o casal gay. Por dar ibope, a presença gay subiu tanto que pelo menos nas novelas periga a comunidade gay deixar de ser uma minoria social. No futebol não é diferente porque ficamos ansiosos que nossos craques façam jogadas diferentes e gols espetaculares que quase nunca acontecem. O normal para os times é a alternância da rotina, ataque e defesa.

Os maquilados sonhos brasileiros

Como lazer, novela e futebol são difusores na mudança de costumes e linguagem. Quando trabalhava na penitenciária, ouvi termos e ditos que depois foram difundidos pelo mundo português afora pelas novelas. Na origem, a gíria tem sua finalidade e a prisão, além de ser uma usina de palavras novas, é um grande exemplo dessa função, já que os presos a usam para confundir a repreensão oficial. Só para a maconha recolhi mais de trinta apelidos. Por exemplo, lá pelos idos de 1985 ouvi dois agentes penitenciários conversando sobre uma bronca em cima de um preso e um deles dizendo: “Não é que ele pagou o maior sapo?” Ora, o termo pagar na cadeia tem uma conotação um pouco diferente da usual. Por exemplo, é costume ouvir lá dentro, “hoje os macacos (guardas) vão pagar sabonete”, isto é, eles vão distribuir sabonetes. E o termo sapo entra aí como coisa ordinária, de pouco valor. Uns dois anos mais tarde ouvi via novela a versão carioca que predominou “pagar mico” (talvez pelo mico preto do jogo de baralho). Lá pelo início dos anos 90 também ouvi uma gíria que só agora, décadas depois, foi repetida na televisão: o termo “chegado” para indicar amigo, companheiro ou comparsa. Lembro-me que a expressão “o bicho pegou” era tão nova quando comecei trabalhar ali que a escolhi para título de um livro meu sobre uma rebelião na penitenciária. Claro que hoje abomino a frase, mas, enfim, a glória das palavras é ser dita numa novela. Embora menos intenso, o futebol também contribui para renovar a língua. Recentemente ouvi de Mr. Blatter, presidente da Fifa, o termo “paradinha”, assim mesmo, em português, no contexto de uma longa entrevista em inglês. Vez por outra aparecem novidades como trololó (veículo usado para socorrer jogadores), chororó e cavadinha, sem falar no grande volume de substituição dos termos originais ingleses para nosso idioma, como, por exemplo, escanteio ou “tiro esquinado”, que era corner nos meus tempos.

Nos costumes, as meninas das novelas ditam a moda na maneira de se enfeitar, vestir e no penteado. Também são as novelas que nos trazem um meio tão artificial que vi num documentário uma africana afirmar que acredita que a vida no Brasil não reflete a maravilhosa rotina das novelas. Quer dizer, até as africanas sabem diferenciar os maquilados sonhos brasileiros que nos vendem da crua realidade. O futebol também trás moda além-campo quando um jovem desfila pelas ruas com a camisa de seu time e a moça, por exemplo, procura usar a cor vermelha na roupa para se declarar torcedora do Flamengo. Tudo isto, é claro, acompanhado de uma vitória do time porque na derrota todos se camuflam “normais”.

TVs só destacam rugas e pés de galinha

O entorno desses gêneros também é semelhante. Nos jornais e internet sempre há um cantinho para antecipar o capítulo da novela. Existem revistas especializadas em construir uma novela paralela àquela que vemos na telinha. Do futebol nem se fala: cadernos dos jornais, artigos em revistas e espaços reservados nos principais noticiosos televisivos. Por outro lado, minha mulher não entende nosso interesse masculino em ouvir tantas abobrinhas nas chamadas mesas-redondas, no domingo e ao longo da semana. Nos programas dos canais de esportes há sempre o mistério de como conseguem preencher tanto tempo com o mesmo assunto. E repetem os gols da rodada à exaustão!Por falar nisto, a televisão é tão poderosa que é capaz de transformar esse momento efêmero em eterno.

A solução desse imbróglio é óbvia. Como as novelas são transmitidas pela televisão aberta – portanto, gratuitas – não custa muito comprar os pacotes de futebol junto às provedoras. Dessa maneira, tal como as novelas, teremos jogos quase todos os dias. E para que ninguém reclame, cada casa deve ter pelo menos dois televisores para esse gerenciamento. Confesso que em casa o televisor moderno de 42 polegadas, fullhd (seja lá o que seja isto), está reservado para o futebol enquanto aquele monstrengo de mais de 15 anos, 21 polegadas, para as novelas. É justo porque o futebol tem que ser visto de longe com planos longos para que se tenha noção do conjunto do jogo, enquanto essas televisões modernas só destacam as rugas e pés de galinha das atrizes.

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[Luiz Ernesto Wanke é aposentado, Curitiba, PR]