Friday, 29 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

O Ano Zero da televisão pública

O ex-primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi renovou seus ataques ao governo de Romano Prodi. Conclamando os militantes de seu partido a manifestarem nas ruas a própria dissidência, declarou que os componentes do governo “se preparam para colocar as mãos sobre a RAI” – televisão pública italiana. Berlusconi afirmou que o fato “é uma verdadeira emergência democrática que não podemos permitir”. “Pelo controle da RAI” – disse – “é possível manipular a opinião pública”.


O alerta é para ser levado a sério. Quem acompanha a história política de Berlusconi conhece a qualidade do seu respeito pela democracia. Foram as suas profundas convicções democráticas, por exemplo, que o levaram a apoiar os EUA na invasão do Iraque, no início do seu governo. Naquele período, porém, a questão da manipulação da opinião pública pela televisão não o preocupava minimamente. Homem mais rico do país, o comando da RAI e das três redes televisivas de que é proprietário garantiu-lhe, durante o mandato, o controle de mais de 90% do panorama televisivo italiano. Talvez este tenha sido um dos motivos que levaram o jornal britânico The Guardian a considerar Silvio Berlusconi a maior ameaça à democracia não só na Itália, mas em toda a Europa Ocidental. Questão de ponto de vista, naturalmente.


Na verdade, Berlusconi tem um jeito muito pessoal de agir democraticamente. Em 2002, durante uma visita à Bulgária, declarou que o uso que os jornalistas italianos Biaggi, Santoro e Lutazzi faziam da TV pública era criminoso e, na qualidade de primeiro-ministro, julgava ser seu dever impedir que o fato se repetisse. E assim, Lutazzi e Biagi não conseguiram firmar mais nenhum contrato televisivo, enquanto a Santoro foi oferecida a condução de programas em faixas horárias de pouca audiência, que o jornalista recusou.


Depois de ganhar a causa trabalhista contra a RAI por violação de contrato, Santoro está de volta. O jornalista vai conduzir o programa televisivo Anno Zero, que será transmitido pela RAI 2, em setembro. Na apresentação do programa à imprensa, declarou que convidará Berlusconi para ser entrevistado.


Anno Zero” – disse Santoro – “é o ponto de partida. Não é uma data, não o considero o meu 25 de abril” – dia em que a Itália foi liberada das forças de ocupação alemã. Da conferência de estampa participou também o presidente da RAI, Claudio Petruccioli, que declarou: “A exclusão do serviço público, como aconteceu com Santoro, não deve repetir-se nunca mais, porque é incompatível com a idéia de serviço público”. O presidente acrescentou ainda que o retorno de Santoro vai além do significado do programa em si. “É a conclusão de um período longo demais, de um acontecimento que danificou a RAI e envenenou a opinião pública”. Para Santoro, tais danos serão reparados completamente “somente quando retornarem Enzo Biaggi, Daniele Luttazzi, Sabina Guzzanti e as outras vítimas do acontecimento na Bulgária”.


O retorno de Santoro à televisão pública é contemporâneo à série de polêmicas sobre a nova nominação do vértice RAI, a ser decidida pelo governo Prodi. A preocupar Berlusconi e seus aliados, todavia, sobretudo a nova lei sobre o conflito de interesses, considerada uma das prioridades do atual governo. Segundo a oposição, a esquerda se prepara a realizar uma lei “punitiva”, finalizada a impedir a ação política de Berlusconi.


Em entrevista concedida ao jornal Corriere della Sera, porém, a jornalista e ex-presidente da RAI, Lucia Annunziata declarou que a resolução do conflito de interesses pode tratar-se de pura ilusão. Segundo ela, sempre que a esquerda vai ao poder, a primeira coisa a desaparecer do programa de governo é a lei sobre o conflito de interesses. Para a jornalista, tal conflito é representado não somente pela pressão exercida pelo partido de Berlusconi contra diretores e chefes de redação, mas também pelo controle que faz da publicidade, dos recursos econômicos, da programação televisiva organizada, em modo a impedir que a RAI possa competir com Mediaset (grupo que controla as redes de Berlusconi).


“Os líderes da esquerda são ótimos quando se trata de criticar Berlusconi”, diz ela. “Mas depois, quando se vêem diante dele, é como se tivessem medo. Parece-lhes gigantesco. Mais potente e gigantesco do que é. E assim, no fim, por um motivo ou por outro, terminamos sempre por manter o conflito de interesses”.

******

Mestre em Scienze dello Spettacolo e Produzioni Multimediali pela Universidade de Veneza, San Donà di Piave, Italia