De repente, me dei conta de que a tal Favorita tinha virado febre e nos lugares que freqüento todos comentavam seus personagens. Resolvi assistir a um capítulo para descobrir quem eram aquelas figuras de quem as pessoas falavam com entusiasmo, como se pertencessem ao seu dia-a-dia.
Na verdade, pertencem, porque a audiência da tradicional novela das oito na rede Globo costuma parar o país em torno das suas mazelas, apelações e realidades interpretadas ou repetidas.
Não sou uma apoteótica espectadora do contra, acho até que há no histórico televisivo brasileiro grandes e belíssimas novelas, como, por exemplo, Roque Santeiro, cujo enredo e imagens me prendeu de fio a pavio, naqueles áureos tempos. Mas, quando comecei a ver o favoritismo da Favorita, se não me assustei, pelo menos, porque já estou acostumada com a violência da vida que todos aprendemos a conviver no mundo atual, confesso que decidi acompanhar para descobrir, sob o ponto de vista da comunicação de massa (afinal, sou professora da área de teoria da comunicação), o que uma sucessão de tiroteios, mortes, assassinatos, disputas psicológicas, seqüestros de vidas, enganações de todos os lados, golpes, planejamentos estratégicos de passar para trás irmãos, pais, filhos, amigos, ex-amigos, roubos, tráfico de armas, arrependimentos de políticos corruptos, quem dá mais para passar e ficar do lado de uma das duas favoritas.
Vazamento do final
O leilão do bem e do mal. A loira contra a morena. A dupla caipira desfeita e refeita. E tome de tiros, erro nos alvos, acerto nas mentes necessitadas de uma série tipo Dallas dos anos 80 ou, pior, alguma impressão inadvertida de Era uma vez o oeste pululando em torno do inconsciente coletivo. Matemos os vilões ou os perdoemos? Seriam eles produtos de nossa incompreensão, de abandonos, de disparidade social, pois não é que sonham com vidas melhores, caviar e champanha, serviçais, ranchos com haras, viagens a Paris, e atrás desse ouro todo, o vale-tudo corre solto.
Aí, num site especializado em notícias de televisão, leio isto:
‘Flora (Patrícia Pillar) tentará armar no casamento de Zé Bob (Carmo Dalla Vecchia) e Donatela (Claudia Raia), mas será impedida por Silveirinha (Ary Fontoura), que será ferido. A vilã, então, seguirá para o Guarujá, onde o casal está em lua-de-mel. Segundo a colunista Regina Rito, de O Dia, é na casa da praia que acontecerá o acerto de contas. Lara e Irene, avisadas de que Flora pode ter ido atrás do casal, surpreenderão a vilã com a arma apontada para Donatela. Zé Bob já estará baleado nas costas. Na cena, até Irene vai sacar uma arma, mas será Lara quem atirará contra a mãe. Ferida, Flora ainda provocará a filha: `Me mata! Filha assassina! Você é uma assassina, igual a mim!´ Lara desiste. A vilã será presa e apanhará.’
O título da matéria fala sobre o vazamento do capítulo final da novela e a necessidade do autor em mudar o ápice do bang-bang para que haja, evidentemente, surpresa.
A vilã perfeita
A maior surpresa seria o leilão do bem e do mal acabar no empate. Uma apoteose freudiana, incrivelmente estampada como uma sucessão de malandragens e más intenções, sob um pano de fundo especificamente inserido no imaginário popular, ou no conteúdo violento de uma sociedade excessivamente competitiva e falsa. Talvez não. Talvez seja mesmo uma possibilidade que o gênero consagrado chamado ‘novela televisiva’ ofereça ao seu público como degustação e catarse para suas emoções represadas.
Melhor acreditar num chamado dos deuses indianos que virão, na seqüência da programação televisiva, mostrar cultura oriental tanto quanto amores impossíveis, quem sabe menos assassinatos, menos golpes, menos maldades?
Mas, se o final da Favorita confirmar o favoritismo que o respeitável público dá ao que houver de mais sórdido na alma humana, esperemos que nas Índias que anunciam para a próxima novela dêem um jeito de incrustar a morte de elefantes, ou de vacas sagradas, ou até de pessoas para que a audiência saia impune, porque os crimes já costumam mesmo não ser julgados ou ter suas penas devidamente pagas pelos personagens soltos à revelia, sem um xerife que os prenda, um justiceiro miliciano que os elimine ou, por mais que possa parecer estapafúrdio, um bom psiquiatra que os trate do grande mal que é a impregnação invasiva de tanta violência na casa de milhões de pessoas, no chamado horário nobre, sem muita possibilidade de escolha.
Daí que assistirei até o finalzinho, claro, pois também estou hipnotizada, pasma, virando torcedora de uma favorita que não escolhi ainda, pois a verdade parece ter vários lados, e o bem, meu bem, nem sei mais de que lado está.
Provavelmente, foi vítima de alguma bala perdida, que não estava no script e foi colocada, às pressas, na sinopse, com vistas a garantir a audiência, essa sim, uma vilã perfeita para um ‘bang-bang’ de sucesso.
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Jornalista, Rio de Janeiro, RJ