Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O Brasil é uma novela

Terminou na sexta-feira (4/11) a novela América, da Rede Globo. No último capítulo, reprisado no sábado, aconteceu tudo o que sempre acontece: todos felizes e muitos casamentos, inclusive o mais surpreendente, o de Gislene e Feitosa. Nada mais surreal se pensarmos no que dizem os roteiristas, coisas do tipo ‘a arte imita a vida’, pois no Brasil real, casamento é coisa rara. Os que duram, então, contam-se nos dedos. E que me desculpem os românticos, mas dificilmente uma Gislene de carne e osso teria voltado com aquele sujeito. De resto, o auge do debate sobre o capítulo final concentrou-se em algo absolutamente irrelevante – o ‘veto’ a um beijo entre homens – justamente por oferecer um retorno financeiro e ibopeano imediato.

Entre meio-dia e meia-noite, a metade do dia com maior audiência, nada menos que seis horas são dedicadas a novelas na Rede Globo: Vale a pena ver de novo, Vídeo show (que não é novela, mas é sobre elas), e as novelas das 6 (Alma gêmea), 7 (Bang bang) e 8 (Belíssima, que estreou nesta segunda-feira). Ou seja, 50% desse período são reservados às novelas. O restante se completa com filmes, futebol e jornalismo.

Nesse momento da crítica, os donos da empresa e seus diretores costumam responder: ‘Ora, nós apenas mostramos o que o povo quer ver; quem não estiver satisfeito que mude de canal’. Nada mais confortável – e tão confortável quanto falso. Primeiro, porque não existem pesquisas que sustentem que o povo queira ver uma novela atrás da outra. Segundo, porque ao sugerirem mudar o canal, o fazem sabendo que estão sendo despeitados, a julgar pelo baixo nível da concorrência e porque seu lucro é diretamente proporcional à audiência. Além disso, caso seu argumento fosse sincero, por que os empresários do setor estariam pressionando contra um modelo de TV Digital que garanta um maior número de canais?

Para piorar, caso este argumento fosse verdadeiro (‘mostramos o que o povo quer ver’), estariam chamando o povo de imbecil – ou será que os mesmos chavões e clichês de toda santa novela estão além da imbecilidade?

Não sou daqueles que defendem a novela brasileira como ‘excelente produto’ ou ainda ‘tão bem-feita que é até exportada para outros países’. Para mim, um excelente produto deve ter conteúdo. Deve ter algo além de belas imagens, uma edição perfeita e atores encantadores. Depois de ler contos e novelas de Guimarães Rosa, Franz Kafka, Machado de Assis, Júlio Cortázar, Jorge Luís Borges, Mia Couto ou Paulo Sandrini, entre outros, você fica um pouquinho exigente.

O próximo capítulo

Do modo como são feitas, as novelas brasileiras não contribuem para a formação do cidadão – papel, aliás, que a Constituição do país impõe às concessões públicas de rádio e TV. Sua estrutura é rígida e está atrelada aos índices de audiência, o que favorece a perpetuação da mediocridade. Presa a este imediatismo, a novela – assim como toda a televisão comercial brasileira – não é capaz de elaborar construções mais sofisticadas, de modo a elevar culturalmente o telespectador.

O resultado mais visível do impacto causado pela novela é a alienação – momentânea para alguns, permanente para outros – do público, que deixa de lado os problemas ao se envolver na trama proposta. Além disso, a novela da Globo é sempre um convite à passividade, já que basta esperar sentado que tudo se resolve no final, e um estímulo ao individualismo, com o abandono completo dos valores coletivos.

Não por acaso, é nesse ritmo novelesco que segue o país: sem perspectiva, sem projeto de desenvolvimento, sem um alento que seja. Como na novela global, quando se está insatisfeito, basta xingar um personagem para aplacar o ódio e aguardar o próximo capítulo.

O Brasil de hoje é uma novela e, como tal, uma ilusão. Desligar a televisão e encarar a realidade pode ser muito mais difícil, mas é a única maneira de o povo se transformar no principal protagonista da história.

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