Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O dia em que JK me serviu um uísque

‘Mas morreu de quê, infarto?’ ‘Não se sabe. A notícia que chegou aqui foi apenas a de que morreu, sem qualquer detalhe. Por isso quero que você vá até a fazendinha JK, lá em Luziânia, onde o Juscelino está morando, apurar essa história. Não vou mandar fotógrafo ainda. Mas se a notícia se confirmar, dá um jeito de avisar ao Jair Cardoso, pra ele mandar fotógrafo. O carro do jornal chega já aí na tua casa, pra te pegar. O motorista é o Adão’.

9 de agosto de 1976. Com quatro meses de contrato e 25 de idade, eu era o mais novo ‘foca’ do Jornal do Brasil. A ordem do chefe da Sucursal, Wálder de Góes, soou como um prêmio, apesar do choque da notícia. Afinal, desde criança, influenciado pela minha mãe, tinha desenvolvido uma grande admiração pela figura do ex-presidente.

Seguimos para Luziânia, a bela cidadezinha goiana há pouco mais de uma hora de Brasília. Aí pelas 10 da noite, depois de muito trabalho para localizar a fazenda, chegamos. Luzes acesas. Alguns poucos carros estacionados à porta e um silêncio de grilos. ‘Adão, pelo jeito é boato mesmo. Isso aqui não está com cara de casa onde morreu gente não’. Desembarcamos, a tempo de cumprimentar de longe o colega David Renault, do Estadão, que já ia embora na kombi do jornal. ‘E aí, David, morreu?’. ‘Boato. Está aí dentro, vivinho. Boa noite’. A porta ainda estava aberta. Lá dentro, Juscelino e alguns amigos assistiam pela TV mais um episódio de O Homem de Seis Milhões de Dólares. Levantou-se para nos receber. ‘Ué, presidente, lá em Brasília a notícia é a de que o senhor morreu’. E ele, sorridente: ‘Pois é, e você não é o primeiro. Já estiveram aqui outros colegas seus querendo confirmar essa informação. Mas estou bem’.

Convidou-nos a entrar, apresentou-nos aos amigos e nos ofereceu uma dose da garrafa de Passport aberta sobre a mesinha em frente à TV. Adão recusou, alegando que estava dirigindo e o jornal não permitia. Retruquei: ‘Pelo amor de Deus, Adão. Não é todo dia que um presidente da Rpública serve um uísque pra gente. Aliás, presidente, não (e caprichei, escandindo as sílabas): Jus-ce-lino Ku-bits-check! Vais ter de aceitar, rapaz, nem que seja um golinho. Não tem nada de errado, nem aparece no bafômetro. Fica tranqüilo’. Juscelino deu risada, pegou dois copos, colocou gelo e uísque, e nos serviu. Vestia um pulôver surrado. Calçava meias e chinelas de couro. ‘Estou me lembrando de você. Não me entrevistou no Rio outro dia?’ ‘Boa memória, presidente. Sou eu mesmo. Entrevistei-o sobre os primórdios da telefonia em Brasília’.

A entrevista ocorrera no ‘Blochão do Russel’, apelido da sede da revista Manchete no Rio, onde Adolfo Bloch cedera-lhe parte do andar onde guardava suas obras de arte para o ex-presidente poder receber jornalistas e outros visitantes. Concedeu-me gostosa entrevista para o Linha Livre, house-organ da Telebrasília. Estava acompanhado de meu primo Luís Carlos, atual gerente de programação da NBR em Brasília. Durante a entrevista, JK aproveitou para perguntar como estava Brasília, há quanto tempo eu morava lá, se gostava da cidade, por que gostava, se já tinha filhos etc. Elegante, nos recebera de terno, mas ao longo da entrevista descalçara os sapatos, exibindo meias pretas de seda. Perguntei se podia fazer o mesmo. ‘Claro’, respondeu, com aquele sorrisão que ganhou o Brasil.

Corta para Luziânia.

– Pois é, presidente, saí da Telebrasília, recebi um convite de Juarez Bahia e agora sou repórter do JB.

Cumprimentou-me pelo novo emprego. Falou entusiasmado do solo fértil do Planalto Central. ‘Se cuidar desta terra, dá. Estou plantando café, quer ver?’ Correu a buscar uma lanterna dessas grandes e me arrastou para o fundo da casa, largando os convivas a assistirem as peripécias do Cyborg. Mostrou-me os pequenos pés de café, arrancou uma folha, iluminou com a lanterna e me entregou, orgulhoso: ‘Olha só que verde bonito! Leve para as pessoas verem como a terra do Cerrado é boa’. Guardei a folha dentro do bloco de anotações, agradeci o uísque, Adão desculpou-se por ter desperdiçado quase tudo (só tomara mesmo um golinho). Despedimo-nos e fomos embora.

O passageiro precioso

Duas semanas depois, novamente em casa, assistindo ao Fantástico, toca o telefone, era Wálder de Góes outra vez. ‘Paulo, Juscelino morreu’. Dei risada. ‘Paulo, não ria que dessa vez infelizmente é pra valer. Foi um acidente na Via Dutra, deve sair já-já alguma coisa no Fantástico. Preciso que vá amanhã novamente à Fazendinha, fazer uma matéria sobre o clima por lá. O Rangel (Cavalcanti) vai te acompanhar. Ah, e escreve um breve relato sobre o que aconteceu naquele dia do boato’. Nem bem desligou e o Fantástico confirmou o acidente.

Chegamos com o dia nascendo, vento frio. Tudo calmo. ‘Rangel, estou com a mesma sensação da outra vez: não está com cara de casa onde morreu gente não. Ainda mais tratando-se de Juscelino’. Uma senhora negra, que depois soubemos se chamar Luzia, passou por nós segurando alguns cabides com jaquetões recém-passados. ‘São para o presidente?’, perguntou Rangel. ‘São, sim, quando ele chega gosta de vestir esses paletós pra se proteger do frio’. Baixou uma preocupação braba: ‘Rangel, ninguém sabe ainda de nada, e nós é que vamos contar. Vamos ser os arautos da má notícia’.

Contamos. E vimos Luzia baixar os olhos e se afastar lentamente, parar num canto da casa, segurando os cabides com os casacos, e chorar um choro contido, silencioso, feito apenas das lágrimas que lhe escorriam sobre as rugas. Entramos pela casa que eu já conhecia um pouco. Vimos os móveis, as louças simples, o chicote, as botas, a Bíblia. Fomos embora, a tempo de cobrir a missa de corpo presente na Catedral. Vi o caixão ser retirado pelo povo de cima do Corpo de Bombeiros, e seguir nos ombros de pessoas anônimas até o cemitério. À noite, já em casa, a emoção represada explodiu. Chorei.

Um dia qualquer de 2002. Já professor de Telejornalismo da UnB, andava embatucado com uma história segundo a qual Juscelino, cassado, havia sido proibido pelos militares de entrar em Brasília. Mas um dia, sabe-se lá como, conseguira matar a saudade da ‘terceira filha’, como se referia a Brasília, entrando na cidade disfarçado de fazendeiro. Queria muito reconstituir essa história para fazer um documentário, mas não tinha nem por onde começar. Ao me encontrar por acaso com o empresário Wayne Faria, um pioneiro de Brasília, falei da idéia. Pedi que me indicasse alguém que tivesse alguma pista. ‘Não precisa procurar mais ninguém: quem dirigiu a camionete onde o presidente Juscelino entrou disfarçado em Brasília fui eu’. Mal refeito do susto, considerei a coincidência um sinal para prosseguir. E realizei o documentário O passageiro precioso onde, pela primeira vez se revela que…

Mas essa é uma outra história.

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