Disse Alexis de Tocqueville (1805-1859) que somente os jornais podiam depositar ao mesmo tempo, em milhões de mentes, as mesmas idéias. Daí que sua responsabilização formativa poderia ser autora tanto das virtudes públicas fundamentais ao processo civilizatório democrático, como ser uma perigosa arma de destruição da controvérsia saudável e do amor à cultura por parte de uma nação. Soren Kierkegaard (1813-1855) temia esta última possibilidade e dizia: os jornalistas não conhecem limites porque podem descer sempre mais baixo na escolha dos seus leitores.
No decênio de 1990, David Broder, importante colunista político americano, em uma série de artigos publicados no Washington Post, ao retomar o espírito que presidiu algumas reflexões do século 19 sobre a imprensa, afirmava que os jornalistas deveriam utilizá-la primordialmente para modificar e melhorar o debate público sobre a cidadania. Ainda apostava na força da palavra e dos argumentos como os melhores meios de exercitar as faculdades críticas dos cidadãos.
O mandamento primeiro do jornalista consistia em contribuir para a elevação moral dos homens, ajudando-os na formação de um juízo público esclarecido e responsável. Para tanto, pressupunha-se o pluralismo informativo e a capacidade de resistir às pressões dos interesses privados, voltados tão somente para o lucro e para a conquista de audiência e, por isso, incompatíveis com o direito democrático à informação devido à cidadania.
Fórmulas batidas e viciadas
No atual momento da comunicação no país estamos diante de algo muito mais complexo e perturbador: a força da imagem advinda da televisão, a qual está presente nas residências de todos, como um verdadeiro totem. A tecnologia das comunicações nos coloca diante de algo que até a segunda metade do século 20 sequer se suspeitava. A invasão totalizante da imagem para o interior dos espaços mais recônditos da subjetividade das pessoas. Nada lhe escapa; sobretudo torna as crianças e adolescentes as maiores vítimas indefesas. A televisão tem força plástica e modeladora: os comportamentos daqueles que comparecem na ‘telinha’ são percebidos como normativos.
A barbárie valorativa presente nos programas televisivos, pautados substancialmente por critérios privados de mercado e pela tirania dos índices de audiência, tem relegado sua função de serviço público formativo a uma negligência perigosa. A festejada liberdade dos interesses de mercado tem se sobrepujado a qualquer outra consideração de ordem ético-educativa da sociedade. O imperativo maior deste tipo de negócio é ‘caçar audiência’, custe o que custar.
Isto tem produzido como conseqüência o avassalador nivelamento por baixo dos seus conteúdos programáticos. Sabe-se muito bem que a qualidade da oferta condiciona o gosto e a exigência cultural dos telespectadores e ouvintes. Há experiências feitas na área cultural em várias partes do mundo que comprovam isto.
Diante deste quadro, qual seria o papel de uma televisão pública? A resposta parece cristalina. Ser aquela que tem por obrigação precípua restabelecer padrões programáticos compatíveis com uma nação que se quer mais integrada, mais culta, mais coesa moralmente e mais democrática. A
TV pública tem de ser modelar em ousadia de programação cultural, tem de priorizar a qualidade intelectual de seus programadores para que possam fazer ofertas culturais e artísticas que os coloquem de forma diferenciada no mercado televisivo. Que deixem para trás o lugar-comum da programação habitual, fincada na acomodação preguiçosa das fórmulas batidas e viciadas que infantilizam o espectador, reduzem-lhe as possibilidades de aquisição do juízo crítico e, portanto, não auxiliam na longa e difícil tarefa de construção de cidadãos esclarecidos.
‘Fatos’ deformados pela opinião
O debate contemporâneo sobre justiça distributiva, reconhecimento de direitos, cidadania, democracia e dignificação da vida aponta para o papel dos meios de comunicação, em especial a televisão, como meios de vital importância na difusão e orientação de valores democráticos permanentes e irrenunciáveis à construção de uma sociedade democrática. Contudo, estes pressupostos são negados cotidianamente nas televisões comerciais. De modo geral, os conteúdos nelas veiculados infelizmente percorrem sentido oposto à afirmação destes valores.
Quanto ao direito democrático da cidadania ao máximo possível de verdade na atividade informativa, o que vemos no Brasil de hoje é o desprezo impressionante pelos fatos e a celebração da opinião do jornalista que a apresenta com todos seus preconceitos e pré-noções como substitutivos dos fatos. Semelhante fenômeno alcançou dimensões assustadoras na sociedade contemporânea, o que suscitou o livro do jornalista italiano Marco Travaglio, cujo titulo emblemático é O desaparecimento dos fatos. Pede-se a abolição das noticias para não perturbar as opiniões.
Os âncoras dos grandes jornais televisivos opinam claramente utilizando-se de contrações faciais, exclamações aparentemente inocentes e espontâneas, técnicas de convencimento como se estivessem em espaço privado, conversando com amigos pessoais. O telespectador sequer imagina que estes profissionais da informação estão em uma concessão pública, prestando um serviço público.
A conseqüência disto, infelizmente, é que na consciência coletiva se enraízam e se fixam estes ‘fatos’ deformados pela opinião e, assim, se usurpa sem mais o direito democrático à informação factual realizada com a objetividade necessária à verdade informativa, aliás, função originária da atividade jornalística.
Construção e resgate da memória
A televisão pública pode ser inestimável instrumento de política da memória pública, resgatando fatos da história sobre os quais pesa grande silêncio, tanto quanto fatos do presente, que não são noticiados na expectativa de criar a realidade conforme os interesses e desejos dos poderosos, portanto de parte da sociedade.
A seleção dos fatos da memória como modo de decidir o que os telespectadores devem esquecer, ou não saber, e àqueles que devem ser incessantemente lembrados, constitui uma das operações de poder persuasivo mais arbitrário, fartamente utilizado pelos regimes antidemocráticos.
Construir uma televisão pública no sentido maior que o termo indica pressupõe grande responsabilidade cívica, sendo que uma das mais importantes é o profundo compromisso com a verdade dos fatos, pois este dever preliminar fertiliza a construção e o resgate da memória pública. É fator importante de estímulo do debate público democrático. Somente assim será possível que uma nação discuta abertamente seu presente para incluir todos no debate sobre seu destino comum.
Convívio cívico e bens coletivos
Fato irrenunciável à tarefa de uma televisão pública é sua contribuição à luta pela dignidade da vida, na medida em que constitui valor supremo da democracia como modo de vida coletivo. Desta feita, sua diferenciação fundamental, em meio aos critérios comerciais que presidem as televisões privadas, nas quais a indignidade da vida se torna mercadoria muito vendável, é enfrentar o desafio de se fazer portadora da política democrática de dignificação do telespectador, ofertando-lhe noticiosos e programas culturais do melhor nível possível. Assim fazendo, se torna veículo de elevação da educação nacional, contribuindo fundamentalmente para a dissolução de estereótipos e preconceitos que pesam duramente sobre os pobres, as mulheres, as minorias étnicas e culturais, os negros, os homossexuais. Assim sendo, podemos imaginar a televisão pública como força auxiliar à imperiosa necessidade da revolução educacional no Brasil, cumprindo o papel de meio de revolucionar as referências culturais dominantes.
A universalização da escola, a melhoria dos conteúdos escolares em todos os níveis, a expansão da universidade pública e do ensino profissionalizante serão insuficientes como meios imprescindíveis de elevação do nível geral de educação. Exige, para se efetivar como processo educativo mais profundo e duradouro, o acompanhamento de uma mudança radical dos paradigmas valorativos da televisão brasileira. Para tanto, a televisão pública, voltada para a tarefa de inaugurar novos modelos de veiculação cultural à televisão, pode desempenhar papel decisivo na melhora da qualidade dos padrões gerais de civilização e cultura.
O significado maior deste processo se inscreve na exigência normativa de democratização incessante da democracia como forma política de convívio cívico e construção incessante de padrões mais altos de cultura, de ética, e de política como bens coletivos.
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Professora titular do Departamento de Sociologia da Unicamp