Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O efeito ‘Flora’

‘A violência na TV aumenta a agressividade porque essa mesma violência aumenta a excitação, ou seja, estimula aos telespectadores’ (Tannenbaum & Zillman, 1975).

Quando, no começo da década, as programações das televisões, mundo a fora, foram tomadas pela febre dos reality shows – uma aposta garantida na criatividade delivery – houve a impressão de que a fase mais violenta da televisão tinha ficado para trás. Entretanto, quase que na mesma época, o cinema brasileiro viveu com Cidade de Deus (2002), uma revolução na forma de abordagem da violência. Foi neste momento que surgiu a violência como estética. A partir daí, outros filmes e veículos começaram a buscar na maneira criativa de tratar um tema tão difícil a base para a re-inserção da violência no cotidiano do entretenimento brasileiro. E com a televisão não foi diferente.

Mas a violência que surgiu desta fase tinha uma espécie de respaldo social. Era a mola necessária para o desenvolvimento de uma narrativa que explicava muitas vezes o inexplicável. Tinha a favela, seus moradores e todo o seu cotidiano como cenário. Com eles, a realidade do tráfico de drogas, dos personagens populares, dos vilões que tinham na infância desprotegida a base para o crime e a crueldade. E a polícia como contraponto. E a televisão, que já tinha tendência para a violência, se aproveitou. Novelas e séries foram produzidas tendo a violência como argumento. Entre os programas que deram evidência a este novo filão destacam-se as novelas Vidas opostas (Rede Record/ 2006), com destaque para o personagem de Heitor Martinez – Jackson da Silva – um traficante que, mesmo preso, impunha o terror aos moradores da favela fictícia onde chefiava o tráfico; e a global Duas caras (Rede Globo/ 2007), na qual a emissora criou em estúdio uma mini-favela para dar mais realidade à trama, que girava em torno dos personagens que ali viviam. E nas séries A Turma do Gueto (Rede Record/ 2002), que somente conseguiu melhorar sua audiência quando aumentou o destaque ao núcleo do tráfico, e Cidade dos homens (Rede Globo/ 2003), feito com as sobras de idéias – ótimas de passagens – incluído produção e atores do premiado Cidade de Deus. Tudo fruto da onda criativa que envolveu a produção do filme.

Polícia investiga a polícia

De tanto se destacar a favela, os conflitos entre traficantes e policiais estavam inclusos no pacote. Bons policiais e maus policiais também tinham sua vez. Contudo, a partir de Tropa de elite (2007), a delegacia vira o cenário da violência. A polícia como antagonista de traficantes heróis, a polícia como antagonista dela mesma, a polícia como protagonista da guerra urbana que tomou conta do Rio de Janeiro, cidade-base da produção de televisão no Brasil. Ao se tirar o holofote do traficante, que mata e maltrata pelo poder de comando dentro da favela, entra em cena o policial não menos violento. Mal pago. Corrupto que tem a retaguarda da lei para seu comportamento. Nada que já não tenhamos visto nos inúmeros seriados americanos reproduzidos e repetidos por nossas emissoras ao longo de décadas. Mas agora são coronéis, sargentos e tenentes brasileiros, o que dá algum ânimo.

Logo no início do ano, a Rede Record levou ao ar A Lei e o Crime – série programada para terminar no final deste mês que deu à emissora, em seus primeiros capítulos, algumas de suas melhores audiências. A trama gira em torno de uma delegada e sua luta por fazer justiça pela morte do pai. Cenas de perseguições, traficantes, policiais corruptos, milícias e a realidade das favelas do Rio de Janeiro compõem as histórias do seriado. Há duas semanas, como parte da nova programação, foi a vez da Rede Globo por no ar a Força-tarefa, também com prazo de validade – doze capítulos. A atração da Globo vai na mesma linha de tudo que tinha sido feito no Tropa de elite e A Lei e o Crime. O fato é que a emissora carioca, após as evidentes comparações com a produção da Rede Record, agora busca enfatizar que em Força-tarefa é a vez da polícia investigar a polícia. Mesmo já tendo alardeado, há muito algum tempo, o desejo de produzir algo na linha do filme de José Padilha, a estrear após A Lei e o crime não foi legal. A Rede Globo acabou comendo mosca.

Testemunho da vida real

Atualmente, a novela Revelação (SBT), cujo enredo se inspirava nos açucarados dramalhões mexicanos, foi se modificando na tentativa de atrair mais público. Hoje, a novela tem um bando de criminosos que se concentram em um lugar muito parecido a todas as favelas que compõem os filmes, novelas e séries mencionadas anteriormente. Quase uma forma de se mostrar capaz também de produzir a violência. Algo como: a gente também sabe fazer! O que se vê são interpretações caricatas que remetem a todos os personagens que estão no ar por aí… Na semana passada, estreou na Rede Record a novela Poder Paralelo, que logo no primeiro capítulo não deixa dúvida a que veio: mais violência à vista. No capítulo do dia 23/04, as cenas da novela se dividiam entre um seqüestro com direito a tortura e uma perseguição em alta velocidade, onde, com o intermédio da polícia, negociavam um outro seqüestro, assim, naturalmente.

Com tanta gente fazendo a mesma coisa, o diferencial acaba sendo a qualidade do ator ou atriz responsável pela condução uma determinada personagem. Uma grande personagem é sempre a ambição do ator. Em tempo de grande foco na violência, um grande personagem virou sinônimo de vilão. Por todos os lados, atores e atrizes se vangloriam ou lastimam das possibilidades que a vilania dá a interpretação. Foi assim com a atriz Patrícia Pillar, cuja carreira deu um salto ao interpretar a vilã Flora (A Favorita, Rede Globo). A excelente, novela de João Emmanuel Carneiro teve como principal mérito mudar o eixo clássico do drama, trazendo para o centro da história, como personagem principal, a vilã. Mais uma conseqüência de tempos em que a violência enquanto estética se impõe no conteúdo. O vilão de agora pode ser cada vez pior.

Independentemente das grandes inovações tecnológicas, das grandes interpretações e todas as possibilidades que circulam esta onda de programas cujo tema central é a violência, nunca antes a programação de televisão no Brasil girou em torno de uma mesma órbita com tanta insistência. Nunca a televisão foi tão violenta. Claro, uma violência bem produzida, bem interpretada, mas não menos violenta do que tudo o que testemunhamos nas ruas, na vida real.

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Crítica de televisão, Brasília, DF