Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O Estado de S. Paulo


TONY SNOW
O Estado de S. Paulo


Morre aos 53 anos ex-porta-voz de Bush


‘Tony Snow, ex-secretário de imprensa do presidente dos EUA, George W. Bush, morreu ontem aos 53 anos de câncer, anunciou a Casa Branca. Snow, que trabalhou como comentarista de rádio e TV, tornou-se porta-voz da Casa Branca em maio de 2006, quando sucedeu Scott McClellan. Ele deixou o cargo em 2007 por razões financeiras.’


HISTÓRIA
Daniel Piza


Historiador faz releitura da Revolução


‘O historiador Marco Antonio Villa considera que o Movimento Constitucionalista de 1932 não foi devidamente analisado. Há sobre ele um ‘farto material pouco estudado’, como se o tema fosse irrelevante ou estivesse resolvido. O livro 1932 – Imagens de uma Revolução (Imprensa Oficial), a ser lançado na próxima terça-feira, demonstra isso. O volume é recheado de fotos inéditas ou pouco vistas e o texto de Villa vai contra o reducionismo que tem dominado nas leituras de uma guerra que teve 80 mil combatentes – o maior conflito bélico travado no Brasil no século 20.


Essas leituras se apresentam em duas abordagens: a dos que vêem 1932 como um gesto heróico de reação ao autoritarismo de Getúlio Vargas e a dos que o caracterizam como reação da oligarquia cafeeira ao poder federal num momento de crise econômica. Villa, por telefone, diz que seu texto faz um ‘breve balanço’ do movimento, mas tem algumas revelações e lança luz sobre a complexidade política daquela situação.


‘O que as pessoas esquecem é que se tratava de um governo de exceção’, aponta. ‘Havia restrições à liberdade de imprensa, às liberdades individuais, ao direito de manifestação. Não havia Constituição e as eleições eram fraudulentas.’ Nesse sentido, Villa diz que 1932 significou uma luta pela democracia, sim, em oposição à corrente de historiadores que afirmam que se tratava de um movimento conservador da República Velha; afinal, defendia o voto secreto e o feminino. Villa também mostra que negros não eram discriminados nas tropas.


Lembra também que a definição do movimento como ‘antivarguista’ deixa de lado o fato de que Getúlio tinha força em São Paulo – seria eleito senador pelo Estado em 1945. Muitos dos líderes de 1932 estariam no poder durante o Estado Novo, como Alexandre Marcondes Filho, Ademar de Barros e Francisco Costa. Intelectuais paulistas como Cassiano Ricardo e Menotti del Picchia, que apoiaram o movimento, trabalhariam para Getúlio. O termo ‘revolução’ foi usado no sentido de ‘movimento armado contra um governo’.


E Getúlio não tinha, em 1932, o poder que se atribui a ele. ‘Isso é anacronismo, é fazer história ?post-factum?, porque Getúlio viria a ser muito poderoso.’ É por aí que se deve entender o papel ‘decisivo’ de políticos gaúchos, principalmente Flores da Cunha. Ele ameaçou apoiar São Paulo em 1932 e Getúlio fez de tudo para dissuadi-lo, inclusive convidando para ser ministro da Justiça. E Getúlio não queria São Paulo com interventores civis de relevo.


Entre as revelações está um discurso do poeta Carlos Drummond de Andrade, que trabalhava no Ministério da Educação, sob ordens de Gustavo Capanema, e defendeu nas rádios a luta de Getúlio contra São Paulo. Villa recupera o livro de memórias de Orígenes Lessa, Não Há de Ser Nada, que define como um relato ‘crítico e irônico’, raro na literatura paulista da época (‘Quanto mais ia para a retaguarda, mais encontrava valentes’). No livro, em reproduções de jornais como o Estado, é possível ver que a propaganda dizia que a vitória paulista era uma questão de tempo. Não era.’


AO MESMO TEMPO
Antonio Gonçalves Filho


O legado de Susan Sontag


‘Ela morreu sem realizar projetos como o de escalar o monte Cervino, aprender a tocar cravo e estudar chinês, mas deixou um legado insuportavelmente incômodo para os americanos, que tinham por ela um sentimento ambivalente de admiração e desconfiança. E não só os americanos. Muito antes de escrever um de seus mais polêmicos textos, logo após o ataque às Torres Gêmeas, em setembro de 2001, culpando a política externa americana pelo atentado terrorista, Susan Sontag (1933-2004) comprou uma briga com os marxistas ao declarar, em 1982, que o comunismo era um ‘fascismo com face humana’. Este último ensaio não figura em Ao Mesmo Tempo (Companhia das Letras, tradução de Rubens Figueiredo, 246 págs., R$ 44), mas o das Torres Gêmeas vem acompanhado de outros dois artigos sobre o mesmo assunto na segunda parte do livro, que chega às livrarias nesta quarta-feira.


Na primeira parte, os ensaios reunidos por Paolo Dilonardo e Anne Jump não chegam a causar incômodo, a não ser aos que têm pudor de usar a palavra belo para se referir a uma obra de arte. Nessa coletânea de ensaios, discursos e notas da escritora, tomadas nos últimos quatro anos de vida, o primeiro dos textos, Uma Discussão sobre a Beleza, critica justamente a mania contemporânea de usar adjetivos errados para definir criações artísticas, evitando a palavra ‘belo’.


Ela implica particularmente com a palavra ‘interessante’, que, como acentua a ensaísta, Nietzsche usava para se referir aos doentes. É possível imaginar alguém dizendo ‘o pôr-do-sol é interessante?’, pergunta Sontag. Então, por que não assumir o postulado hegeliano de que a beleza da arte é mais elevada do que a beleza da natureza, sendo ela produzida pela ação humana, por uma obra do espírito? Para ela, o estético é em si mesmo – assim como o era para Kierkegaard – quase um projeto moral, um sinônimo de ético. Os que consideram as coisas apenas ‘interessantes’ são os que sucumbem às regras do consumismo, ajudando a expansão do mercado, que existe para espantar o tédio burguês.


Consumismo, aliás, é outra palavra usada com freqüência no discurso da ensaísta. Nos últimos anos de vida, quase já não falava mais de novidades para não cair na armadilha do mercado. Fiel às antigas paixões literárias, ela celebrava a literatura russa e revisava um ensaio sobre o Nobel de Literatura de 1955, o islandês Halldór Laxness (incluído no livro), quando morreu. Era justamente sobre o desconcertante Embaixo da Geleira, história de um jovem recrutado por um bispo para investigar o que se passa numa aldeia em que a igreja está fechada há 20 anos, encarregando-o de avaliar a incúria espiritual do pastor. Sontag, como se sabe, era materialista. Laxness, um católico (por pouco tempo) convertido ao marxismo. Não deixa de ser revelador o interesse de uma doente terminal por um romance que fala da jornada de iniciação de um jovem às voltas com heresias e desejo erótico, cuja viagem termina com o mesmo descobrindo estar falando com fantasmas.


Era esse o medo de Susan Sontag, o de que já estivesse no outro mundo. Seu filho, o editor e também escritor David Rieff, diz que ela trabalhava para a posteridade justamente ‘em razão de seu medo imoderado da extinção’. Ela não queria partir, garante Rieff, que promete para os próximos anos o lançamento do diário, das cartas e ensaios não coligidos da mãe, isso se conseguir localizar todos os escritos na bagunça que era o apartamento nova-iorquino de Susan Sontag, ‘à beira da explosão de objetos, impressos, fotos e, é claro, livros, livros intermináveis’.


Neste último livro, o eurocentrismo de Susan Sontag é flagrante. Não há referências a escritores americanos, mas sobram páginas para a literatura de Victor Serge, Dostoievski e até mesmo para a protofeminista italiana Anna Banti, mais conhecida como mulher do crítico Roberto Longhi e autora de um romance (Artemisia) sobre a pintora Artemisia Gentileschi, aquela que pintou Judith cortando o pescoço de Holofernes com uma fálica espada. Susan Sontag, como se sabe, era lésbica. Foi amante da fotógrafa Annie Leibovitz, que explorou as imagens de seu câncer num livro deplorável. Num esforço de memória é possível lembrar que a feminista escreveu pouco sobre mulheres, mesmo sobre suas grandes paixões. Simone Weil foi uma das contempladas em Contra a Interpretação (1966), um dos principais livros da ensaísta ao lado de Sob o Signo de Saturno (1980), o melhor de todos eles.


Sobre judaísmo, ela, que nasceu Susan Rosenblat, filha de um judeu negociante de peles, escreveu um pouco mais, quase sempre relacionando o tema à literatura. No ensaio sobre Dostoievski, por exemplo, ela se pergunta como explicar o ‘degradante anti-semitismo’ de um homem tão sensível ao sofrimento humano e, sobretudo, como explicar o amor dos judeus pelo autor de Crime e Castigo? Ela mesma responde: lendo Verão em Baden-Baden, de Leonid Tsípkin, um ‘milagre’ da literatura que antecipa a marca registrada de W.G. Sebald, qual seja, a inclusão de fotos nos livros para questionar a noção de verossimilhança. Segundo Sontag, a ficção de Tsípkin sobre Dostoeivski pode não explicar seu ódio pelos judeus, mas justifica o fervor dos judeus pela literatura russa.


Essa fervorosa leitora dos russos se revela mais do que gostaria no ensaio sobre o belga de origem russa Victor Serge, autor de O Caso do Camarada Tulaiev. Serge, cujo nome verdadeiro era Víktor Lvóvitch Kíbaltchitch, escapou ao modelo habitual do escritor engajado. Foi um militante socialista que virou dissidente e cuja hiperprodutividade nunca foi bem-vista no meio literário. A exemplo de Serge, Sontag foi igualmente hiperprodutiva e marxista na juventude, imprecando depois contra as arbitrariedades dos países totalitários.


Por vezes, ao falar de Victor Serge, Susan Sontag parece estar falando de si mesma. Nunca se mostrou penitente, mas tampouco se arrependeu ou abriu mão de propor mudanças radicais na sociedade. Prova disso é ter mantido a firme convicção de que o ataque terrorista do 11 de Setembro foi não só um ataque contra a modernidade – ‘a única cultura que torna possível a emancipação da mulher’- como também contra o capitalismo de um Estado (o americano) que não admite ser contestado.


Trecho


Para esta americana, e nova-iorquina, estarrecida, triste, os Estados Unidos nunca pareceram tão distantes de uma compreensão da realidade como se encontram agora em face da monstruosa dose de realidade da última terça-feira. A falta de nexo entre o que aconteceu e como isso podia ser compreendido, e o palavratório hipócrita e os rematados engodos propagados por quase todas as nossas figuras públicas (uma exceção: o prefeito Giuliani) e comentaristas de tevê (uma exceção: Peter Jennings) são espantosos, deprimentes. As vozes autorizadas a acompanhar o evento parecem ter se associado numa campanha para infantilizar o público. Onde está o reconhecimento de que esse não foi um ataque ‘covarde’ contra a ‘civilização’ ou a ‘liberdade’ ou a ‘humanidade’ ou ao ‘mundo livre’, mas sim um ataque contra a autoproclamada superpotência do mundo, desfechado em razão de alianças e ações americanas específicas? Quantos cidadãos têm consciência do bombardeio em curso no Iraque? E se devemos usar a palavra ‘covarde’, seria mais adequadamente aplicada àqueles que matam fora do alcance da retaliação, no alto do céu, do que àqueles dispostos a se matarem a fim de matar outros. No que diz respeito à coragem (uma virtude moralmente neutra): digam o que disserem dos que perpetraram a matança de terça-feira, eles não são covardes. (extraído do texto 11/9/2001)’


TRADUÇÃO
Boris Schnaiderman


O céu e o inferno de um tradutor


‘A Tradução e A Letra, de Antoine Berman, com o subtítulo Ou O Albergue da Solidão, foi publicado agora pela 7 Letras em tradução de Marie-Helène Catherine Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. Trata-se de uma obra importante para os que se preocupam com esse tema.


Em primeiro lugar, deve-se levar em conta que, ao tratar da ‘letra’ nas traduções, o autor não a vê como uma fidelidade palavra a palavra, mas como um apego forte ao original, de modo a ressaltar o que há de latino na língua francesa, quando se trata de um texto romano, ou o seu lado britânico, no caso de um autor inglês. Em suma, tem-se assim algo bem semelhante à famosa afirmação de Walter Benjamin (citado pelo autor em diversas passagens), e que se baseava nesse caso num texto de Rudolf Pannwitz, no sentido de que era preciso sanscritizar, grecizar, anglicizar o alemão, quando se traduzia das respectivas línguas. O ‘literal’ passa a ser assim uma renovação da linguagem literária, na base do que se tem em outros idiomas.


É curioso observar que este grande apreço pela referida passagem de Walter Benjamin no ensaio A Tarefa-Renúncia do Tradutor foi também sempre manifestada por Haroldo de Campos, cuja concepção da tradução como ‘transcriação’ parece, à primeira vista, ser o oposto da teorização de Antoine Berman.


Isso nos leva à seguinte conclusão: eles se situam realmente em posições opostas, mas não antagônicas, o que pode ser afirmado com apoio em numerosos exemplos. Assim, Haroldo se referia com freqüência à ‘lei das compensações’ na tradução. Isto é, ao traduzir um autor, deve-se utilizar seus procedimentos característicos, mesmo nas passagens em que eles não aparecem, para compensar aquelas em que o tradutor não conseguirá reproduzi-los. Pois bem, Berman afirma o mesmo, baseado num texto de Fernando Pessoa traduzido para o francês.


Constata-se facilmente que este era um procedimento constante na prática tradutória de Haroldo. Assim, na tradução de Boris Pasternak, Definição de Poesia (incluído na antologia Poesia Russa Moderna, Perspectiva), aparece o verso A Dor do Universo Numa Fava, onde no original havia palavras sem maior peso no conjunto do poema. Ora, não há como fugir à constatação do grandioso e do pungente desse decassílabo em português.


À semelhança de Haroldo, Berman lança um olhar crítico sobre o passado histórico da literatura e chega assim a conclusões bem interessantes. Ele recorda, por exemplo, que as traduções francesas, séculos a fio, se caracterizaram pelo etnocentrismo, isto é, pela redução do texto aos padrões correntes no país. Escreve: ‘Etnocêntrico significará aqui: que traz tudo à sua própria cultura, às suas normas e valores, e considera o que se encontra fora dela – o Estrangeiro – como negativo ou, no máximo, bom para ser anexado, adaptado, para aumentar a riqueza dessa cultura.’


A liberdade que se tomava com os originais para torná-los palatáveis ao gosto francês chegava a extremos ridículos. Assim, ao traduzir o famoso monólogo do ‘ser ou não ser’ no Hamlet de Shakespeare, Voltaire perpetrou dois sonoros alexandrinos, que foram, aliás, transpostos com muita habilidade na tradução brasileira: ‘Fica, força é escolher, e passar num instante/ Da vida à morte e do ser ao nada.’ Convém acrescentar ao que nos diz Berman: este etnocentrismo das traduções francesas teve conseqüências perniciosas nos países cujo mundo intelectual tinha Paris como centro de irradiação cultural. Vejamos, pelo menos um pouco, como isso funcionou em relação à difusão da literatura russa.


Em 1892 foi estabelecida uma aliança militar entre a Rússia e a França, derrotada pela Prússia na guerra de 1870-1871, e que se sentia ameaçada pela Alemanha, onde havia uma reação ao forte revanchismo predominante entre os franceses. A partir desse momento, tudo o que era russo se tornou moda em Paris.


A literatura russa, pouco traduzida para o francês, foi então a sensação do momento. Os editores franceses empenharam-se em publicar traduções de autores russos. O público estava cansado de naturalismo e materialidade crua então dominantes, de modo que a voga da literatura russa acabou coincidindo com uma necessidade premente. Mas, ao mesmo tempo, aqueles editores achavam os romances russos repletos de reflexões filosóficas e temiam que elas assustassem o público. Aqueles livros eram, portanto, submetidos a um aligeiramento e a um tratamento estilístico bem francês, de acordo com um padrão de elegância e ‘bom gosto’.


Exemplo típico disso foi o tratamento ao romance Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski. Apareceu em Paris uma adaptação assinada por Halpérine-Kamenski, na qual a vasta obra era transformada num pequeno romance policial, de trama bem urdida, mas sem um pouco sequer dos profundos mergulhos na problemática do homem, típicos daquele romance. Pois bem, a publicação francesa deu origem a retraduções em diferentes países, sempre com a omissão do fato de tratar-se de uma adaptação. No Brasil, houve diversas, inclusive uma já em fins da década de 1960.


Enfim, não são poucos os fatos tristes ligados com esse tema, mas creio que Berman, ele mesmo um tradutor, exagera ao tratar do ‘estatuto vergonhoso’ da tradução e ao lembrar que ‘Steiner fala, com razão, da tristeza que acompanha sempre o ato de traduzir’. Onde fica então o júbilo do tradutor nos seus momentos felizes? Mas, para o autor, a tradução é uma ‘atividade indispensável e ?culpada?’, perante a qual ‘a relação com a sexualidade e o dinheiro salta aos olhos’. Ora, não seria mais justo falar de céu e inferno do ato de traduzir?


Diversas colocações parecem um convite à discussão. É o caso, entre outras, de sua afirmação: ‘As grandes obras em prosa se caracterizam por um certo ?escrever mal?, um certo ?não controle? de sua escrita.’ Não haverá nisso uma generalização excessiva? Embora sejam corretos os exemplos que traz à baila, tirados sobretudo da literatura russa. Em todo caso, esse livro, que é versão ligeiramente refundida de uma série de conferências no Colégio Internacional de Filosofia, em Paris, vai muito além de seu objetivo imediato e nos obriga a uma reflexão sobre o tema.


Boris Schnaiderman é tradutor, escritor e crítico literário’


REVISTA
Francisco Quinteiro Pires


Ensaios mostram o que há de Oriente no País


‘O número 6 da Revista de Estudos Orientais foi planejado como complemento da edição seguinte. O tema dos 18 ensaios deste número trata do Oriente no Brasil. No próximo, haverá a inversão: O Brasil no Oriente. Descortina-se um painel no qual o Oriente desponta em manifestações culturais diversas que marcam o País a partir da chegada dos imigrantes na virada do século 19 para o 20, quando era preciso substituir a mão-de-obra escrava.


Um dos resultados desse fenômeno aparece nas ruas brasileiras, no comércio, na universidade e na literatura dos descendentes orientais, que trazem um elemento novo à literatura brasileira. O olhar estrangeiro sobre o País aparece no ensaio de Paulo Daniel Farah, professor de língua e literatura árabe. Ele conta a viagem do imã bagdali ‘ Abdurrahman al-Baghdádi ao Brasil em um navio do Império Otomano, na segunda metade do século 19. Durante aproximadamente três anos, o imã (sacerdote muçulmano)passeou pelo Rio, Bahia e Pernambuco e manteve um diário em que descreveu as cidades, os seus habitantes, além da fauna e da flora.


Em outro artigo da Revista de Estudos Orientais, produzida pelo Departamento de Letras da USP, o pesquisador Rogério Dezem analisa os textos e as imagens publicados em O Malho e Revista da Semana entre 1903 e 1908. A partir do que se veiculou na imprensa nascente, Dezem buscou revelar os elementos formadores do imaginário nacional sobre os japoneses e os chineses. Notou a pluralidade dos discursos sobre esses imigrantes, mostrando estereótipos que iriam estigmatizá-los nos anos seguintes.


O mestrando da USP Daniel Santana de Jesus aborda a valorização de figuras de origem judaica na poesia romântica brasileira, apesar de uma certa tradição cristã, que carregava um sentimento de hostilidade aos judeus, intensificado a partir da Idade Média.


O mito de São Tomé, aquele que só acreditava vendo, aquele que duvidou da ressurreição de Cristo, aparece no ensaio de Eduardo de Almeida Navarro. Ele teria surgido na Índia, onde os portugueses o assimilaram. Transposto para o ambiente colonial brasileiro, esse mito desempenhou relevante papel na incorporação pelos portugueses de novos fatos culturais, revelados com as descobertas e a colonização. O colonizador também garantia a evangelização com a manipulação desse mito, que apareceu na literatura colonial. São Tomé permanece em tradições de guaranis da América do Sul.’


LITERATURA
Marilia Neustein


‘Escrever é saber observar’


‘Foi na Pousada da Marquesa, em meio a um forte assédio durante a festa literária de Paraty, que o escritor Cees Nooteboom concedeu esta entrevista. Homem curioso, de alma nômade, o holandês já publicou mais de dez títulos de literatura de viagem. ‘Não se trata de dicas de hotéis ou classificação de restaurantes, eu investigo os ambientes, faço reflexões’, explica. Traduzido em diversas línguas e elogiado por respeitados nomes da literatura – como o Prêmio Nobel J.M. Coetzee -, Cees não é propriamente um erudito. A principal matéria-prima de sua obra é sua vivência profunda do mundo: ‘Tinha vontade de viajar e a experiência que isso traz não se ensina.’


Tempo curto – meia hora apenas -, o escritor mistura inglês, espanhol e, vez ou outra, uma expressão em francês. Conta a história de seus casamentos, dos tempos em que trabalhou como marinheiro e dos rascunhos iniciais como escritor: ‘Meus primeiros livros são muito românticos, fruto de uma juventude aventureira.’ Dotado de sensibilidade e olhar apurado, afirma que a habilidade de um escritor não está apenas na intimidade com as palavras. Mas também no gosto pela observação: ‘Mesmo quando se observa o lado mais obscuro das pessoas, a origem tem que ser uma forma de amor.’ E foi justamente esse interesse pelas pessoas, que fez com que o escritor buscasse, em Paraty, a leitora que lhe enviou a ‘carta mais bonita’ que já recebeu na vida. Queria retribuir o carinho. Tanto entusiasmo não é à toa. Abre o sorriso: ‘Para mim, a empatia com o mundo é a coisa mais importante que existe.’ Os leitores agradecem.


Que mudanças notou no Brasil entre 1968 e hoje? Politicamente, a mudança é notável. Eram os tempos da ditadura. E o Brasil era muito distante no imaginário de um europeu. No avião que nos trouxe, em 68, chegaram a borrifar inseticida antes de descermos. Hoje, claro, isso acabou e discute-se, no mundo inteiro, a questão da Amazônia e das florestas tropicais.


O que o levou a escrever? Fui expulso do monastério por mal comportamento. Isso, mais minha vontade de viajar, acabou me levando para o sul da França. É uma região muito iluminada, colorida. O norte, onde eu vivia, era muito cinza, especialmente naquela época, o pós-guerra. O sul da Europa me pareceu sedutor. Pensei: é assim que eu quero viver. Ingênuo, claro. Foi com esse espírito que escrevi meu primeiro romance, em 1954. A história é sobre um jovem que escuta falar de uma garota chinesa e, sem conhecê-la, se apaixona. Sai em busca desse amor. Isso é romântico e imaturo. Hoje me pergunto: em toda a Europa, como e onde ele acharia uma chinesa? (risos)


E quando essa ingenuidade se perdeu e deu espaço para o escritor profissional? Quando publiquei meu primeiro livro, percebi de imediato: o livro é um objeto verdadeiro. Eu me surpreendi com as pessoas dizendo, você é um escritor. Fiquei perdido. Hoje sei que, para escrever, é preciso ter pelo menos um tipo de ‘connaissance du monde’. E eu não tinha bagagem nenhuma naquela época. E sem saber o que estava fazendo, acabei por fazer a coisa certa. Quando você é muito jovem, escreve o que quer. Mas quando você tem um público leitor, a responsabilidade é maior, como percebi posteriormente.


Depois da moça chinesa, qual foi seu próximo livro? Olha, de novo me apaixonei. Só que desta vez, de verdade. Foi por uma garota do Suriname que, na época, era colônia da Holanda. O pai dela era diretor de uma empresa de navios e ele me propôs trabalhar em um de seus barcos para me ajudar a ganhar algum dinheiro. Foi assim que trabalhei como marinheiro. Foi quando comecei a anotar impressões dos lugares que visitava.


Mas você se casou, assim, tão jovem? Foi, mas não por vontade do meu sogro. Ele disse que me achava um ótimo rapaz mas, evidentemente, não me permitiria casar com sua filha. Partimos para Nova York, onde não precisávamos de permissão e nos casamos. Meu divórcio veio oito anos depois, de maneira amigável. Continuamos bons amigos. Aliás, no ano passado, quando completaríamos 50 anos de casado, ela me convidou para ir a NY comemorar 50 anos de ‘não-casamento’.


Você foi? Minha esposa atual não achou muita graça. (risos) Mas eu contei tudo isso para dizer que comecei escrevendo pequenos relatos dessas viagens de navio numa revista da Holanda. E meu segundo livro, O Prisioneiro Apaixonado, com histórias de marinheiros, prisioneiros e barcos também foi fruto dessas aventuras.


Você é conhecido por suas descrições detalhadas e sensíveis. Onde aprendeu a apurar o olhar? Quando eu estava no colégio de padres, um monge escreveu no relatório sobre minha personalidade: ‘Cees é crítico demais.’ Nasci um observador. Depois, aprendi que, para fazer disso uma profissão, é como se você tivesse que apontar seu lápis todos os dias.


Mas você tem algum método? Tomo nota o tempo todo. Além disso, compro coisas para conhecer o local, a história do povo, os costumes. Filtro, então, de todo esse material, aquilo que preciso para rechear meu trabalho. Quando você tem a habilidade de escrever, deve se interessar pelas pessoas. Olhá-las com carinho. Ter uma empatia com o mundo é sempre muito importante.


Seus livros de viagem são como seus romances? Eu sempre vi meus relatos de viagem como parte da minha literatura, porque não escrevo dicas de restaurantes ou recomendações de hotel. Faço reflexões apuradas dessas vivências. Por exemplo, eu não tinha idéia de quanto seria interessante essa festa em Paraty. Esses festivais literários existem em todos os lugares, durante todo o ano. O diferencial deste é que, depois das mesas, a festa continua. Isso é muito cativante e muito brasileiro.


Você vai continuar viajando pelo Brasil? Vou para Salvador. Minha esposa quer ver um rito de candomblé. Eu estive na Bahia em 68 e posso dizer que ir a um candomblé de verdade, não desses para turistas, é uma experiência extremamente marcante.


E o próximo livro? Estou trabalhando em um nos últimos anos. Ele se chama Tumbas. São fotos dos túmulos dos grandes poetas pelo mundo.


No seu último livro, Paraíso Perdido, a narradora é uma menina brasileira. Como foi escrever na voz de uma mulher? Se você quer ser um bom escritor, tem que se dedicar à habilidade de desvendar pensamentos femininos também. Você só pode ser um bom ‘imitador’, se for um bom observador. É como aprender línguas. Por que existem pessoas que têm mais facilidade de falar outras língua? Porque conseguem ouvir melhor e imitar os sons. Obervação é isso. Mesmo quando se observa o lado mais obscuro das pessoas, as características mais frustrantes, a origem tem que ser uma forma de amor.


Uma das suas personagens alimenta um interesse peculiar por anjos. Você acredita que eles existam? (risos) É muito fácil dizer que não. Porque a resposta obviamente é não. Não sou religioso, mas a minha editora italiana é. E me contou uma história muito estranha. Disse ela, que quando fez o caminho de Santiago, tinha a sensação de que havia ‘presenças’ com ela. Acho que as pessoas têm momentos na vida que são muito perigosos e o medo nos faz pensar que há alguém para cuidar de nós. É um pensamento amável e confortável, mas eu ainda não consigo acreditar em anjos. (risos)’


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