Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O fim de um estereótipo

Vale a pena prestar a devida atenção a um comercial sobre caldo de galinha que a televisão vem exibindo. Em princípio, nada de mais: um pai prepara uma refeição para o filho à base do tal caldo. Mas logo se torna claro que o pai e a mãe não moram na mesma casa, que são divorciados. Pela primeira vez, ao que parece, a publicidade permite-se a ratificar a separação de casais. Até agora, décadas depois da adoção do instituto do divórcio no país, a família-de-anúncio-de-TV passava uma imagem de relação estável, religiosamente eterna, sem crises.

Cumpre à observação da mídia registrar alterações nos estereótipos que movimentam as suas representações. A televisão, em especial, comunica-se com seu público à base predominante de clichês ou estereótipos, que são as repetições de uma forma padronizada. Todo estereótipo, um dos mais expressivos recursos da TV e da publicidade, é uma condensação retórica de emoções coletivas.

A velha retórica, por sua vez, é mais do que nunca atual enquanto arte da expressão e da persuasão, não raro empregada como técnica política, em virtude de seus efeitos de controle dos discursos. Serve para convencer, no sentido racionalista do termo, e para agradar ou bajular, o que dá bem o alcance de seu aspecto afetivo ou irracional – portanto, em linhas gerais, serve para comunicar idéias e emoções, produzindo sensações.

Discursos congelados

O estereótipo visa basicamente a chamada ‘inteligência emocional’ do público, entendida como um tipo de inteligência baseada não apenas na racionalidade cognitiva, mas também naquilo que se dá a conhecer como afetos – percepção direta dos estados corporais e emocionalismo – e que constituiria um elo essencial entre o corpo e a consciência.

Sabe-se bem que a inteligência não depende da consciência clara de um ‘eu’ puramente racional, já que são muitas as formas de compreensão que caminham na obscuridade. Mas a inteligência emocional corrente na mídia é geralmente entendida como eficácia do estado afetivo, portanto, como pretexto para o controle gerencial das emoções apaixonadas, em função de uma racionalidade instrumental, que se pode pôr a serviço da criatividade na produção, mas principalmente em função do consumo. Seu apelo dirige-se ao ‘corpo do consumo’, favorecendo fortemente as imagens midiáticas capazes de suscitar sensações, emoções e paixões.

É normal que organizemos o mundo em imagens, para melhor conhecê-lo. Até mesmo as ciências naturais podem nos oferecer imagens do mundo, mas sem barrar o caminho para que as operações críticas venham a desintegrar essas mesmas imagens. Na vida social, entretanto, as imagens que o senso comum emprega para construir as representações do mundo podem congelar-se nos discursos e pretender assim eternizar os mitos geralmente inerentes à narração da realidade.

Hábitos e percepções

Esta é a função principal dos estereótipos. Trabalhados por essa máquina de narração do mundo por imagens, que é a televisão, os estereótipos reforçam poderosamente as representações conservadoras circulantes na vida social. A família-de-anúncio-de-TV era, até agora, um clichê que negava a história (e o sentido) da família concreta em benefício de uma imagem publicitariamente harmoniosa.

Tudo bem, alguém poderá dizer, mas a publicidade televisiva terminou despertando para a realidade histórica do casamento, que convive com o instituto do divórcio. Outro poderá mencionar a força de modernização da publicidade, exatamente por meio da intervenção do mercado de consumo nas percepções e nos hábitos coletivos. Mas ainda está para ser feito um bom levantamento crítico, dentro e fora do escopo publicitário, dos estereótipos que presidem aos critérios de valor-notícia (o que o jornalismo considera digno de ser noticiado) e às argumentações supostamente críticas da mídia. O noticiário político corrente é um prato cheio.

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Jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro