Muito tem se discutido recentemente sobre a qualidade da programação televisiva que invade diariamente nossos lares. São programas que oscilam entre o informativo e o entretenimento, com toques eróticos e até animalescos, sem medir limites para conseguir audiência. Respeito pelo telespectador é algo inexistente na maioria dos vocabulários dos gestores da programação. Mas isso não representa novidade para ninguém, ou pelo menos, não deveria.
A questão que pouco tem sido discutida é muito mais pertinente do que as condenações vazias e sem prognósticos contundentes que estão sendo feitas sobre a programação atual: estamos diante de uma oportunidade ímpar para resolver esse problema e alavancar a programação da TV brasileira, tornando-a uma ferramenta educadora e de inclusão social. Trata-se da televisão digital, muito falada, mas pouco discutida, e muito menos ainda, entendida.
Sobre qualidade e formatos, nada
Desde 1991 o governo brasileiro trata do tema, mas de uma forma tão vazia e burocrática que fica difícil saber se o objetivo é a transição para um novo modelo, mais justo e democrático, ou se é apenas uma forma de estender um modelo já fracassado, mas rentável para alguns. Até 2002, todas as discussões sobre o tema estavam restritas à parte tecnológica, mais especificamente, aos três sistemas de TV digital implantados no mundo. Em 2003 a discussão ganhou um novo integrante: a inclusão digital que, segundo a literatura e os críticos, leva à inclusão social. Como esse meio-campo é feito na prática ainda não foi definido, pelo menos não no caso brasileiro.
Em 9/7 deveria sair (deveria, porque esse texto foi redigido antes) o resultado da chamada pública da Finep e do Ministério de Ciência e Tecnologia para o credenciamento das instituições que pretendem participar do Sistema Brasileiro de Televisão Digital. O próximo passo deve ser a publicação de um segundo edital, dessa vez propondo ou pedindo projetos de pesquisa amplos e de alcance social, que possam gerar a tão desejada inclusão digital. Porém, na referida chamada pública esse conceito sequer foi citado, apesar de o governo ter dito no decreto nº 4.901, de 26/11/2003:
Art. 1º Fica instituído o Sistema Brasileiro de Televisão Digital – SBTVD, que tem por finalidade alcançar, entre outros, os seguintes objetivos:
I – promover a inclusão social, a diversidade cultural do País e a língua pátria por meio do acesso à tecnologia digital, visando à democratização da informação;
O mesmo decreto previa o prazo de um ano a partir da composição do Comitê de Desenvolvimento para a definição sobre as necessidades de desenvolvimento de um sistema nacional ou da possibilidade de adoção de um dos três sistemas já consolidados, além de uma posição sobre o modelo de referência e de negócios. Esse comitê foi criado em março. Até agora inexiste qualquer definição pública sobre o assunto.
Pela bagunça e irresponsabilidade com que o governo brasileiro está tratando o assunto, não é de se estranhar que a programação e seus impactos estejam ainda desconsiderados. Aliás, não só a programação, como a regulação também. Mas isso é discussão para um outro texto, afinal, se o governo conseguir resolver a briga com as agências reguladoras já será um grande avanço…
Com poucas exceções, apenas a fundação CPqD e algumas universidades têm estudado, ainda que superficialmente, o conteúdo dessa nova mídia. Ainda assim, restrito a estudos de protótipos e modelos conceituais. Nada relacionado à qualidade e aos formatos da programação.
Nova mídia
No momento em que a TV interativa quebra os paradigmas da unidirecionalidade da TV e da inércia do telespectador, ela não representa uma simples evolução tecnológica, mas uma nova mídia, com problemas e especificidades diferentes das da TV analógica. Vale ressaltar que aqui estamos falando de interatividade, não de compra de pizza pela televisão, que até pode ser considerada interatividade, embora paupérrima, e nem dos programas que assim se autodenominam por falta de criatividade de seus diretores, ou como simples jogada de marketing, tentando explorar a ingenuidade do público.
A televisão analógica, por restrições tecnológicas, não permite a interatividade. O telespectador não pode se comunicar com o transmissor sem fazer uso de um terceiro meio de comunicação, seja telefone, fax ou e-mail. A única interação possível é com o próprio aparelho receptor: ligar, desligar, trocar de canal. Essa impossibilidade deixa o telespectador totalmente inerte, sem ação diante da programação oferecida. Entramos na segunda característica, a passividade. Quem está sentado diante da telinha apenas recebe as informações transmitidas, sem ter um papel ativo em relação a elas.
No caso da TV interativa esses dois paradigmas são quebrados. Abre-se a possibilidade de interagir com o transmissor; o telespectador começa a tomar um papel ativo diante da TV, interrompendo a unidirecionalidade do veículo. Duas mudanças importantes na própria concepção do media televisão, que representam uma verdadeira revolução na teoria televisiva.
Essa quebra de paradigmas não representa o fim da televisão, pois a atual forma de assistir à TV pode continuar. Representa, isso sim, o surgimento de uma nova mídia, com características próprias, peculiares à sua natureza tecnológica. TV interativa não é uma simples junção ou convergência da internet com a TV, nem a evolução de nenhuma das duas. É uma nova mídia que engloba ferramentas de várias outras, entre elas a TV como conhecemos hoje e a navegabilidade da internet.
A grande oportunidade
É aqui que reside a grande chance de reverter o quadro de queda da qualidade da programação televisiva. Se o raciocínio acima estiver correto, essa nova mídia precisa de um conteúdo novo, adaptado, que explore as novas potencialidades. Um conteúdo que, pela natureza interativa do veículo, vai ter que necessariamente ter a participação mais ativa do telespectador, até mesmo para garantir o sucesso comercial da TV digital como um todo. Se a única vantagem da digitalização da TV for a melhora da imagem e do som, corre-se o risco de repetir o mesmo fracasso da tecnologia nos EUA, onde a interatividade foi desconsiderada durante o processo e o desenvolvimento da TV digital, e o modelo não decolou mercadologicamente.
Como a transição da TV analógica para a digital é planejada e executada conforme as possibilidades socioeconômicas e culturais, ou pelo menos deveria ser, há tempo para planejar e elaborar novas políticas para o conteúdo televisivo. Políticas estas que respeitem a inteligência do povo e lhe tragam melhores perspectivas de vida. Mas, como vimos acima, se isso depender do governo, a desculpa de que os recursos do Funttel não podem financiar conteúdo vai durar até que todo mundo pergunte: o que deu errado na implantação da TV digital no Brasil? Se televisão é áudio e vídeo, e acredito que continue sendo assim na TV digital, o áudio e o vídeo devem estar no centro da discussão, delimitando o problema tecnológico, e não o contrário. Hoje o conteúdo está sendo tratado como um incômodo, que também precisa de investimentos para ser estudado e pesquisado.
Da mesma forma que hoje ninguém mais discute qual padrão de transmissão colorido é melhor, uma vez que os dois praticamente se equipararam, é possível, e até provável, que dentro de alguns anos a discussão sobre os sistemas de TV digital, que hoje só se sustenta política e economicamente, acabe se auto-esvaziando. Aí pode ser tarde para tratar de questões como colonialismo cultural, dominação ideológica, reflexos da Sociedade da Informação, ou mesmo entretenimento e informação de qualidade através da televisão. O momento de discutir isso e outros assuntos correlatos é agora, junto com o debate sobre qual tecnologia deve suprir melhor as necessidades do país.
Está sendo dado um enfoque bastante amplo na inclusão digital, que, como já foi dito, deve levar a inclusão social. Porém, a melhor e mais barata forma de inclusão social para o caso brasileiro ainda pode ser uma programação televisiva de qualidade, educadora e transmissora de valores culturais e de conhecimentos úteis no dia-a-dia da população. Algo muito diferente do que estamos acostumados a ver.
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Pesquisador do Núcleo de Televisão Digital Interativa do Departamento de Jornalismo da UFSC e autor, juntamente com Carlos Montez, do livro TV Digital interativa: conceitos, desafios e perspectivas para o Brasil