Exibido em 2014, o filme “O Abutre”, de Dan Gilroy, descreve em sua primeira parte o cotidiano de cinegrafistas independentes, especializados em captar imagens de acidentes, mortes violentas e tragédias, para depois vendê-las a emissoras de TV.
Tentando ganhar a vida desta forma, Lou Bloom (Jake Gyllenhaal) adquire dois equipamentos –uma câmera digital e um aparelho que capta frequências usadas pela polícia.
Em pouco tempo, Bloom consegue vender uma primeira reportagem para Nina Romina (Rene Russo), editora de um telejornal popularesco. Na sequência, ela explica didaticamente qual é o tipo de imagem que espera receber dele.
“A melhor maneira de capturar o espírito do que levamos ao ar é imaginar o nosso noticiário como uma mulher gritando enquanto corre pela rua com a sua garganta cortada”, diz. “Entendo”, responde Bloom.
O filme perde o rumo na segunda parte, quando o protagonista evolui da posição de um repórter sem ética para a de psicopata, e comete inúmeros crimes graves. Mesmo assim, vale pelo que mostra no início –a disputa de cinegrafistas pela imagem mais chocante possível no esforço de agradar a editores com sede de sangue.
Voltei a me lembrar do filme no final da tarde da terça-feira (23/6), quando cinegrafistas a bordo de dois helicópteros, um a serviço da Record, outro da Band, registravam ao vivo uma perseguição policial a dois suspeitos em uma motocicleta.
Eufóricos, em seus respectivos estúdios, Marcelo Rezende, no “Cidade Alerta”, e José Luiz Datena, no “Brasil Urgente”, descreviam a cena com a empolgação de um narrador esportivo em dia de jogo decisivo. A certa altura, um dos homens atirou um capacete em direção ao policial, que os seguia também em uma motocicleta. Ele revidou com tiros.
Na sequência, com os dois já caídos, vimos o policial parar a sua moto e voltar a atirar em direção a eles. Ele desce da moto, se aproxima dos dois, mexe em algo e se afasta.
“Se ele atirou é porque o bandido estava armado. E ele fez muito bem”, defendeu, imediatamente, Rezende. “Não sei se os caras apontaram o revólver para o policial, não vi. Provavelmente, sim”, disse Datena.
No dia seguinte, a Polícia Militar de São Paulo informou que prendeu administrativamente o policial com base nas imagens exibidas por Band e Record. É uma situação irônica ver dois programas que frequentemente enaltecem a ação dessa polícia fornecendo as eventuais provas do abuso de um integrante da corporação.
Ainda na terça-feira, passado o impacto, e revendo a cena, Datena levantou dúvidas sobre a ação do policial, sendo imediatamente xingado, via Twitter, por dezenas de espectadores, defensores do mantra de que “bandido bom é bandido morto”.
O caso de Rezende é mais complexo pelo fato de o “Cidade Alerta” ter se tornado um programa policial com toques de humor. A nova abordagem, que elevou a audiência da atração, não apenas atenua o impacto das barbaridades que mostra como também atrai um público mais jovem para a sua audiência.
No seu realismo grotesco, as cenas da perseguição, captadas de helicópteros e narradas por Datena e Rezende, provocaram a estranha sensação de que estávamos assistindo a um filme de ficção. Infelizmente não era.
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Mauricio Stycer, da Folha de S.Paulo