Aí está mais uma novela das 9: Paraíso Tropical. Pelas chamadas, todo mundo já percebeu que se trata de um apanhado de clichês explorados exaustivamente em todas as novelas passadas nos últimos 25 anos, no mesmo horário, especialmente as assinadas pelo autor Gilberto Braga.
Mais uma vez, o subjornalismo instalado nos suplementos dos diários populares (O Dia, Extra e outros menos lidos) e nas revistas semanais com foco em celebridades & futilidade & vulgaridade abre espaços enormes para exaltar o autor, que despeja seu blablablá sobre a realidade que vivemos para justificar o enredo e o comportamento anacrônico dos personagens. Estréia de novela da Globo é acontecimento nacional graças à imprensa. Só no Brasil…
Os elementos que fazem parte do estreito universo dramatúrgico de Gilberto Braga são sempre o sexo como arma para chantagens e conquista do poder, homossexualismo despudorado (isto é, sem a delicadeza e tato que o tema exige ao ser abordado na TV), prostituição requintada, ausência total de ética e de romantismo nas disputas amorosas. Em todas as novelas escritas por ele, lá estão os mesmos personagens vivendo os mesmos papéis, as mesmas situações, tentando alcançar os mesmos objetivos, apenas com nomes e lugares diferentes.
Idiotas e vulgares
E lá estarão as mesmas caras e bocas dos mesmos canastrões e canastronas (salvo as exceções dos raros bons atores e atrizes nas novelas em geral) murmurando ou gemendo ou gritando histericamente o mesmo palavrório das outras novelas, para encerrar cada capítulo com as interrogações de praxe: quem comerá quem, quem trairá quem, quem descobrirá que é o pai ou a mãe de quem, quem saberá que não é o filho ou filha de quem, quem revelará para quem que ama outra pessoa do mesmo sexo.
A lista das tramas emaranhadas no novelo de todas as novelas não é muito mais longa que isso. Os assíduos novelistas saberão alongá-la com mais capacidade do que eu. Mas garanto que não muito.
São esses os suspenses que servirão ao entretenimento de dezenas de milhões de pessoas nos quatro cantos do país pelos próximos seis meses. São pessoas que necessitam de novelas assim como do ar que respiram – ainda que poluídos, não há como evitá-los, o ar e a novela. No perfil clássico do brasileiro, além de amante do futebol, samba e carnaval, também já foi incorporado o de dependente de novelas. O por quê é um capítulo a se abrir em duas longas direções, histórica e psicológica.
Odeio as novelas pela deformação que provocam nas mentes, principalmente dos espectadores carentes de princípios familiares e sociais (aquelas noções meio ultrapassadas sobre comportamento em público, respeito ao próximo, ética etc…) e de cultura adquirida nas escolas ou nos livros – especialmente na literatura.
Como se não bastassem as produzidas por nós, há a ainda as novelas importadas – uma delas atende pelo nome de Rebeldes, e nela um monte de adolescentes débeis mentais faz prevalecer seus desejos valendo-se de um comportamento desafiador no colégio, na rua e em casa. O número de fãs e cegos adeptos da sigla RBD é enorme. Uma apresentação do grupo musical, que creio que também trabalha na novela, provocou um tumulto com mortes entre milhares de adolescentes, que se acotovelaram para vê-los, em São Paulo, há pouco tempo.
Incomodam-me – e até evito – as chamadas das novelas nos intervalos dos programas que mais me atraem na Globo: jornalismo e futebol. Mas às vezes é inevitável e, sempre que isso ocorre, isto é, deparar com a chamada para a tal da Malhação ou de outras novelas, ouço, invariavelmente, diálogos idiotas e vulgares.
Enredo e originalidade, zero
Será uma estranha coincidência que só acontece comigo? Pode ser que o erro esteja no editor das chamadas, que seleciona o que há de pior no próximo capítulo e deixa de lado o melhor, o mais saudável, digamos assim, se é que existe. O certo é que, há tempos, cheguei à conclusão – presunçosa, reconheço – de que não há vida inteligente nas novelas, entre quem as escreve ou as dirige ou interpreta os pobres textos – ressalvando-se as honrosas exceções, aliás, raríssimas.
Há uma farsa intelectual por trás das novelas que se impõe graças à força estupenda do veículo que a sustenta, a TV Globo. Mas o que é pior é o incentivo e a exaltação diária no subjornalismo que elas merecem. Não se lê crítica de TV nos nossos jornais. É só exaltação na forma de notas sociais e mundanas dos artistas nas colunas ou reportagens com o destaque de um fantástico furo de reportagem sobre o futuro de determinado personagem.
Mas serão todas as novelas tão nocivas assim? Admito, com muito boa vontade, que não. As de temas históricos, por exemplo, penso que sejam mais limitadas às ousadias dos autores e diretores. Mas ainda assim… eles não resistem ao apelo da sensualidade (Argh! Como essa palavra já se gastou, de tanto ser usada para ocultar sacanagem!) em qualquer horário.
Enfim, aí está mais um campeão de audiência, assinado por Gilberto Braga, sendo servido com a pompa e as circunstâncias que todas as novelas da Globo merecem. Confiram, e depois digam se exagerei na antecipação do lixo dramatúrgico que entra em cena e da sensação permanente de déjà-vu, do primeiro ao último capítulo, que ocorrerá com todos os novelistas. Aposto que a diferença desta para as outras será a abordagem mais aberta dos temas. E é aí que mora o perigo…
Não vale o argumento favorável de que é bem feita, a produção é rica, as fotografias iniciais são lindas e coisa e tal. Isso é o mínimo que se espera da Globo: luxo. Nesse quesito, ela é nota 10. Mas nos quesitos enredo e originalidade, duvido que mereça algo acima de zero.
Desafio à criatividade
Odeio novela de televisão como subdramaturgia em relação ao cinema e ao teatro, mas não o folhetim, de onde elas têm origem. Grande parte de minha formação infanto-juvenil deu-se no cinema. Por tempos, acompanhei seriados cujos capítulos eram exibidos somente nas matinês de domingo. Conseguirá Nyoka chegar a tempo de salvar o companheiro prestes a despencar do precipício? Claro que, uma semana depois, veríamos que ela conseguiu e se embrenharia em novas perseguições a bandidos até o final do capítulo, quando um pavio será aceso para detonar uma bomba ao lado da heroína amarrada e amordaçada. Só saberíamos uma semana depois que também dessa armadilha ela se safaria.
Nyoka me ocorre como exemplo, mas havia outros heróis de seriados, que eram exibidos antes da atração principal das matinês, geralmente um bang-bang com Hopalong Cassidy ou Roy Rogers.
Outro gênero de folhetim, também muito atraente, era o impresso nos jornais ou revistas. ‘O Mistério de MMM’, em O Cruzeiro, a revista semanal de maior circulação na América Latina, foi um sucesso nacional, escrito por vários autores famosos, entre eles Raquel de Queiroz e Jorge Amado. Cabia a um deles escrever um capítulo que se encerrava com um gancho, cuja seqüência era de responsabilidade de outro autor – e assim sucessivamente, durante meses. Esse era o desafio à criatividade que eles se impunham e quem ganhava era o leitor, com textos primorosos.
Folclore de redação
Mestre do folhetim, incomparável em seu tempo, foi Nelson Rodrigues. As histórias dele eram destrinchadas diariamente e duravam uma semana, na Última Hora e, depois, no Globo, sob o pseudônimo de Suzana Flag. Tratavam de dramas urbanos, com personagens tão bem descritos que a gente imaginava esbarrar com eles em cada esquina.
Conta o folclore da redação de ambos os jornais que, muitas vezes, a um chamado ao telefone, Nelson ia atender e se distanciava da mesa. Alguém sentava em seu lugar e prosseguia, aleatoriamente, a partir do trecho interrompido. Por exemplo: ‘e, então, resignada, Cacilda enxugou as lágrimas de crocodilo…’ e o gaiato preenchia: ‘… e se dirigiu á cozinha, empunhou a faca pontiaguda…’ Nelson retornava, conferia o texto e voltava a batucar as teclas, sem pestanejar: ‘…e pensou: da próxima vez, ele me paga. Em seus olhos rútilos de paixão, brilhou uma chama de ódio…’ e a história seguia em frente.
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Jornalista aposentado, escritor, autor de oito livros, e roteirista de televisão com seis mininovelas levadas ao ar pela TV Globo no horário intitulado Caso Verdade