Saturday, 30 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

O novelo da novela

Chegou mais uma novela das oito, que começa às 21h, pois, como se sabe, é marca dos tempos modernos roubar o tempo de todos por meio de uma estratégia que consiste basicamente no seguinte: uma ocupação geral e intensa do tempo dos indivíduos em coisas de que ele não precisa. O supérfluo não é vendido apenas, é falsamente dado de presente, e este é o caso das telenovelas, prazer falsamente pago pelos anunciantes sem que os telespectadores saibam que em verdade quem paga a conta são eles, morem em megalópoles centrais ou remotas vilas e aldeias dos cafundós do Brasil.

O certo é que onde chega a antena de televisão, chegará também a fatura, inclusive política e ideológica. Não é só o almoço que não é de graça, como reconheceu o famoso economista John Maynard Keynes em frase célebre, depois atribuída também a outros, inclusive a Delfim Netto. Nada é de graça, tudo é pago, e para que tudo seja pago, tudo precisa estar à venda. O indivíduo, inclusive.

O roteiro é de Aguinaldo Silva, escritor que abandonou a literatura para render-se à televisão. Deve ter feito bom negócio, ainda que tenha escolhido dois ofícios que ele sabe inconciliáveis. Indagado acerca da opção, diz que foi decisão familiar abandonar as letras para dedicar-se à televisão e que um dia voltará a escrever romances.

Demos a palavra ao escritor para explicar as razões de sua escolha:

‘Ficou decidido durante uma reunião do meu conselho de família. Assim que o meu contrato terminar, eu me aposento como novelista e aí retomo a minha carreira de romancista. Tenho vários romances inacabados, mas pretendo me ocupar mesmo, quando for possível, da elaboração de um deles, que se passa no Rio de Janeiro, quando o Rio começou a se tornar a belíssima cidade que não é mais hoje em dia (a não ser que alguém confunda uma cidade com a paisagem na qual ela está situada). Nesse romance eu pretendo trabalhar com outra figura imortal das letras cariocas: João do Rio, que será inclusive personagem da minha história’. (Jornal do Brasil, 28/6, Caderno B, pág. B2).

E quem diagramou a matéria, deu um destaque muito pertinente e significativo: ‘Quero me desligar do Aguinaldo Silva que eu fui e me reinventar’.

Personagem forte

Senhora do destino substitui Celebridade, de Gilberto Braga, que imobilizou o Brasil no capítulo final, sexta-feira (25/6), reapresentado sábado. Todos queriam saber quem tinha matado Hugo Carvana. Pois souberam: foi Cláudia Abreu. Novela é coisa familiar, todos os personagens entram em sua casa todos os dias e fazem de tudo na sala. E a imprensa acompanha o périplo de personagens, atores e atrizes, como se personagem e ator fossem um ser só, uno, indiviso. Alguns deles têm sido às vezes elogiados ou detratados nas ruas e praças públicas das grandes cidades onde vivem ou por onde tenham andado.

A protagonista Senhora do destino é Maria do Carmo, vivida pela atriz Susana Vieira, ainda que nos primeiros capítulos a do Carmo esteja na pele de outra atriz, Carolina Dieckmann.

Susana Vieira tinha 17 anos quando viveu seu primeiro papel no teatro. Completou 44 anos de carreira, 34 dos quais na TV Globo. É uma das poucas celebridades femininas a assumir a idade: tem 61 anos.

Faz parte de nossos usos e costumes a mulher esconder a idade. Como entre nós a história das mentalidades ainda engatinha, não nos damos muito ao trabalho de saber por quê. Mas arriscamos algumas boutades a respeito, como a de considerarmos que merece confiança a mulher que esconde a idade porque dá mostras de guardar uma confidência, coisa rara no ser humano. De todo modo, entre preconceitos solidamente arraigados no patriarcalismo da formação social luso-brasileira, vige um especialíssimo: a fofoca é feminina.

Alijada do centro de decisão familiar, restaram a mulher a fofoca e a intuição, esta última afiada em séculos de exclusão que a teriam levado a adivinhar o que ocorria a seu redor, pois não era informada dos eventos essenciais e se via obrigada a ler olhares, gestos, carrancas, sorrisos, como se operasse um serviço de meteorologia do lar.

É marca registrada de grandes romances a presença de uma personagem feminina muito forte. Exemplos não faltam. Algumas delas, aliás, estão presentes nos próprios títulos: Ana Karenina (Tolstói), Madame Bovary (Flaubert), Iracema (José de Alencar) Teresa Batista, Tieta, Dona Flor, Gabriela (todas de Jorge Amado). Outras vezes, os títulos dissimulam. O que restará de Dom Casmurro (Machado de Assis) se tirarmos Capitu? Bibiana e Quitéria, entre outras, são indispensáveis a romances como O Tempo e o Vento e Incidente em Antares (Erico Verissimo).

Recados reais

O que têm a ver esses romances, as novelas e as recentes paradas do orgulho guei? Talvez devamos destacar uma dupla clandestinidade que está embutida neste novelo. Não apenas no Brasil, mas nas Américas pobres a literatura, entre outras funções que lhe são próprias, cumpre uma especialíssima: é a história tida por ilegítima das sociedades. Ilegítima porque não é aceita, é bastarda, é faz-de-conta. A versão posta como verdadeira é a dos historiadores que, como prova, a documentam à luz de teorias específicas e pesquisa em correspondências e JORNAIS!

Mas se você quer conhecer bem um país, não leia apenas os livros de História. Leia sua literatura e a imprensa epocal. E se não tiver tempo para as duas opções, escolha a segunda: o povo é mais interessante, criativo e surpreendente do que fazem crer os documentos coligidos pelos historiadores! Afinal, recolheram dos jornais o que lhes interessava a seu olho, armado de uma tese prévia sem a qual não escreveriam os livros.

Vá desarmado a romances, poesias, crônicas, ensaios heréticos e recortes de jornais. Emergirão realidades repletas de sutis complexidades, que não cabem em espartilho de método nenhum. Certa vez um jornalista, acho que foi Paulo Francis, disse que a sorte dos políticos brasileiros era que os jornais tinham editores!

Sendo clandestinas as versões, é preciso descobrir e aprofundar o que revelam. Mas a imprensa não tem feito isso, infelizmente. Ficamos na tábula rasa das telenovelas. Cumpre ao signatário apontar os indícios de que há algo a mais no ar e que o movimento que levou mais mulheres às redações, ao Senado, à Câmara, às assembléias legislativas e câmaras de vereadores, aos ministérios, às secretarias de governo, estaduais e municipais, às gerências de bancos e empresas, a diversas outras chefias, revelam que a mulher está mudando de lugar na sociedade. E que as paradas de orgulho guei, com suas estonteantes aglomerações, não indicam apenas que os interessados sejam os gueis. Eles apenas estão na liderança aparente. Move-os um cataclismo social.

Cansadas de patriarcalismo diversos, inclusive de alguns deles mantidos por mulheres, pois o fenômeno é complexo e contraditório, as ruas estão dando novos recados: os reais, nas passeatas: os simbólicos, nas telenovelas.

Santa Paciência

Se tivesse que escolher uma personagem feminina para símbolo dessas novas lutas, além das literárias, entretanto imaginárias, o signatário optaria pela juíza Denise Frossard, que disse, entre outras coisas, estas pérolas:

** ‘O momento exige que os homens de bem tenham a audácia dos canalhas, como disse Disraeli.’

** ‘A corrupção custa ao Brasil 30% do PIB (Produto Interno Bruto).’

** ‘Nos países mais corruptos, como Bangladesh, Paraguai e outros, nota-se que a mulher está praticamente ausente das esferas de poder. Na Finlândia e na Suécia, considerados os menos corruptos, existe um fantástico equilíbrio de gênero.’

Espero, confio e tenho certeza de que o talentoso escritor que Aguinaldo Silva demonstrou ser em romances como República dos assassinos e Cristo partido ao meio, entre outros, emergirá outra vez nas tramas, intrigas, peripécias e o que mais vier em Senhora do destino. Outro regalo é que uma atriz de verdade será a protagonista. E embora tenha sabido cuidar do corpo, mostrará, aos 61 anos, que o ser humano veio a este mundo para outros fins, diferentes daquele que modelos e ‘modelas’ (está na hora de criar o insólito feminino), devidamente manipulados por espertalhões do comércio que tudo vende, nos fazem crer que seja o único, baseado no dogma de que a beleza física deve triunfar de qualquer jeito, nos termos e padrões em que é imposta, até que se passe dos 25 anos, quando então todos, a julgar pelos critérios apregoados, serão descartados e jogados no lixo social.

Projetos de cidadãos brasileiros, de todos os gêneros, nascem destinados ao lixo social, em favelas urbanas ou rurais. Entre eles, mulheres e gueis cumprem destacados papéis, quase sempre ocultos por clandestinidades diversas. Compõem uma história secreta que aos poucos vai sendo desvendada.

Nosso propósito, ao identificar a confusão, é convidar os leitores a outras reflexões, em outras linhas, deflagrando, quem sabe, também na imprensa, outros olhares, para que ela não seja apenas espelho da sociedade e faça trabalho reflexivo que a engrandeça um pouco mais, para bem dos leitores. Afinal, outros poderes já estão dando mostras de que o indivíduo pode, sim, fazer alguma coisa, mesmo limitado pelo cipoal institucional em que todos vivemos.

Do contrário, corremos o risco de concordar com Veja, a maior revista semanal de informação do Brasil, que com tanta confusão na semana, com tantos temas e problemas novos, nos deu Einstein na capa, com o fim de mostrar que o que falta é aperfeiçoar o talento dos profissionais. Deve ser isso mesmo: o que falta não é emprego, é profissional qualificado. Socorra seus editores Santa Paciência, protetora de leitores enganados! A novela das oito, que é das nove, dá de dez a zero em honestidade. Não esconde que suas tramas são de mentirinha.